São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997
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Não à desnacionalização

LUCIANO COUTINHO

A longa crise de uma década e meia, desde o início dos anos 80, jogou o sistema empresarial brasileiro na defensiva. Sob grande incerteza, com ameaça recorrente de hiperinflação, penúria cambial, regressão do sistema de financiamento e desagregação do Estado, a estrutura empresarial não pode crescer e se concentrar em grandes grupos privados.
O estreitamento da fronteira de oportunidades de acumulação produtiva de capitais direcionou as estratégias para objetivos rentistas e para a busca de ganhos patrimoniais, relegando a segundo plano a inovação industrial e tecnológica. Enquanto algumas economias do Leste Asiático (notadamente a Coréia do Sul) puderam saltar para frente, constituindo grandes grupos econômicos com crescente capacitação técnica e com afirmação de marcas mundiais, o sistema privado brasileiro foi obrigado a marcar passo.
A estabilização de preços obtida em 1994 com o Plano Real poderia ter aberto a possibilidade de retomar o crescimento sustentado -o que permitiria expeditar a recuperação do tempo perdido. Com efeito, no auge do aquecimento da economia de 1994 para 1995, a maioria dos nossos grupos empresariais vislumbrava planos de investimento de grande escala. Infelizmente, porém, a forte sobrevalorização da taxa de câmbio, combinada com a manutenção de juros muito elevados, tornou inconsistente a política macroeconômica: o crescente déficit externo inviabilizou a sustentação do crescimento e tem provocado surtos recorrentes de suspeita de desvalorização da taxa de câmbio.
A este déficit de confiança agrege-se a rápida e intensa penetração de produtos importados -de todas as categorias. Como resultado, o aumento dos investimentos produtivos tem sido muito modesto (i.e., ainda não ultrapassou 17% do PIB) e, com isso, não se acelerou significativamente a modernização da estrutura empresarial privada. No caso dos grupos de capital nacional as dificuldades se avolumam. Premidas por condições desiguais de competição, as empresas nacionais vêm sendo engolidas em muitos setores industriais e de serviços por concorrentes estrangeiros.
Semana passada ouvi, com estupefação, de uma alta autoridade da equipe econômica, a afirmação de que essa desnacionalização do sistema empresarial não deveria preocupar. O capital estrangeiro sendo mais apto e capacitado, auxiliaria a superar mais depressa as nossas deficiências de competitividade. A aflição com respeito ao avanço da desnacionalização seria um sentimento ideológico obsoleto ou fruto de algum complexo de inferioridade.
Não sei se essa autoridade econômica já refletira sobre o assunto ou apenas "racionalizou" um fato incômodo -hábito aliás mimetizado do próprio presidente Fernando Henrique, mestre na arte da explicação elusiva. A verdade é que o complexo de inferioridade decorre muito mais desse ceticismo estabelecido a respeito do potencial da empresa nacional. Esta é sempre estereotipada como incompetente, rapina, sequiosa por proteção. As empresas estrangeiras, por sua vez, seriam as portadoras da nossa redenção tecnológica e gerencial.
Ao contrário desta prédica preconceituosa, existem sólidas razões para se preocupar com o robustecimento e capacitação dos grupos econômicos de capital nacional. Não se trata de xenofobia. O capital estrangeiro já deu e deve continuar dando uma importantíssima contribuição ao desenvolvimento brasileiro, mas é fundamental contar com grupos nacionais qualificados e aptos para atuar globalmente, pelas razões seguintes: 1) uma parcela crescente dos investimentos estrangeiros diretos se faz por meio de parcerias, associações e joint ventures, o que requer a presença de empresas nacionais capacitadas; 2) em muitos setores, o fortalecimento das empresas nacionais é necessário para assegurar e intensificar a competição no mercado doméstico; 3) a debilidade financeira e o reduzido porte dos grupos empresariais brasileiros dificultam a adoção de estratégias ativas de inovação técnica e de internacionalização -como resultado, fica difícil avançar em setores de elevada complexidade tecnológica, alto valor agregado e forte dinamismo de mercado.
Em suma, a superação das deficiências competitivas do sistema industrial brasileiro não pode prescindir de um conjunto de grupos nacionais de grande porte, com habilitação gerencial e capacidade própria de inovação. Sem isso não se desenvolverão núcleos endógenos de progresso tecnológico, capazes de criar novos mercados e de gerar empregos de elevada qualificação e rendimento. O capital estrangeiro pode cumprir apenas em parte essas funções, pois tende a concentrar os seus centros de inovação nas respectivas matrizes.
Parece, portanto, adequada e oportuna nesse estágio do nosso desenvolvimento uma estratégia de formação de "campeões nacionais" que, a partir do Mercosul, se projetem como atores globais. Grandes grupos econômicos eficientes podem alavancar mais crédito e capitalização e podem investir mais agressivamente. Podem, também, exportar vigorosamente para minimizar a crescente vulnerabilidade comercial. Coordenados, em articulação com o Estado, fortalecem o poder nacional e aceleram o progresso técnico. Sem eles, ficaremos excessivamente dependentes das estratégias de outros atores privados e reduzidos à mimetização -sem personalidade- de produtos, design, marcas e referências culturais alienígenas.
Não se recomenda qualquer restrição ao investimento direto estrangeiro, mas apenas que sejam criadas condições eficientes para fortalecer a empresa nacional. A privatização, por exemplo, poderia ensejar saltos de escala para vários grupos. O Brasil -ao contrário do que pensam os xenófilos- tem empresários, administradores, engenheiros, tecnólogos, designers e outros profissionais competentes e criativos que, em condições menos desiguais, poderão assegurar presença global e desempenho competitivo às empresas brasileiras.

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