São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997
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O maníaco e o depressivo

CARLOS AUGUSTO CALIL
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Alguém havia-lhe dito (não pude jamais saber quem fosse, e isto me deixa ainda hoje intrigado pois tenho horror de escrever cartas!) que eu dispunha de um talento epistolar..."
Cendrars, "La Tour Eiffel Sidérale"

Blaise Cendrars teve poucos correspondentes. Suas duas mulheres, Felá Poznanska e Raymone Duchateau; seu amigo de juventude, suíço como ele, August Suter (aparentado do general Johann August Sutter, herói de "L'Or"); um jovem escritor que o admirava, Jacques-Henry Lévesque, seu alter ego americano, Henry Miller, e Paulo Prado foram interlocutores assíduos. John dos Passos e Robert Delaunay estão provavelmente entre os correspondentes ocasionais. Outro brasileiro trocou mensagens e mesmo privou de alguma intimidade com Cendrars, Ribeiro Couto, mas a extensão dessa correspondência não autoriza a sua inclusão no rol dos principais beneficiários da palavra de Blaise.
A correspondência com Lévesque, organizada por Monique Chefdor, foi publicada com o título de "J'écris. Écrivez-moi", pela editora Denoël, em 1991. As cartas trocadas com Henry Miller apareceram em volume, reunidas por Miriam Cendrars, pela mesma editora, em 1995. Em ambos os conjuntos nota-se uma assimetria; Cendrars é o alvo da admiração de seus correspondentes, que se consideram tributários de sua literatura e de sua opção de vida. Aproveita-se Cendrars dessa situação para fazer de Lévesque o depositário da sua obra no prelo. Miller é o aventureiro das letras que abandona os Estados Unidos, onde se sente tolhido pela hipocrisia da sociedade puritana, para adotar, no ocaso dos anos loucos, a Paris desprovinciana e libertina, na qual vive o seu guru. Cendrars, ao saudar o escritor americano que "nous est né" e avalizá-lo em famoso artigo, nada mais fez que reconhecer uma de suas personas.
Com Paulo Prado a balança pende para o outro lado. Era mais velho que Cendrars 18 anos, foi um de seus mecenas, proporcionando-lhe a maioria das viagens que de fato realizou em vida, nem por isso credor de sua gratidão, mas do seu afeto:
"Não lhe agradeço por nada, mas saiba que penso em você todos os dias e que falo de você como se fosse vê-lo a qualquer momento" (carta de 22/2/28).
Nos seus livros, o perfil que Cendrars desenha -com a mão amiga- desse peculiar milionário é tão preciso quanto implacável:
"Temperamento as mais das vezes paradoxal, sentia um prazer malandro em chocar seus concidadãos e de desconcertá-los para manter a ilusão da juventude..." ("Le Brésil");
"(Paulo Prado) que se tornou empresário e que se revelaria um espírito realista duma audácia rara era no fundo um espírito fino, distinto, cultivado, intelectualizado como é de praxe em certas famílias latinas..." ("Bourlinguer");
Cendrars não compreendia por que "os homens de negócio se levam tão furiosamente a sério e são tristes" ("Une Nuit Dans la Forêt"). Em Prado, o humor negro, de corte inglês, mal compensava a melancolia, provocada pela depressão que lhe rondava o espírito.
A conversa de Cendrars era famosa pela graça e fôlego; ele era capaz de manter horas a fio a atenção de seus interlocutores mesmo que a história fosse repetida. São inúmeros os depoimentos nesse sentido. Prado o queria por perto para diverti-lo e animá-lo, distraí-lo em suma das pesadas responsabilidades que assumira como homem de negócios e chefe de um poderoso clã. A amizade dos dois confirma a química do encontro de um maníaco com um depressivo.
Além disso, Prado mostrou-se sempre disposto a socorrer os artistas prontos. Villa-Lobos, Brecheret, Mário de Andrade e Cendrars foram alguns dos favorecidos pela sua discreta generosidade.
"Terminei para a Grasset a história do general Johann August Suter (...). O volume sairá no fim do mês. Há mais de 15 anos tinha vontade de escrever esta história, e não a teria ainda escrito não fosse a temporada que passei com você, minha visita a São Martinho e nossas longas conversas. Em cada capítulo, você verá de imediato tudo o que lhe devo, Paulo, e, normalmente, deveria ter lhe dedicado esta história..." (carta de 13/2/25).
A dupla confissão, do escritor e do amigo, é reveladora da fecundidade do convívio de Blaise com Prado. Foi no Brasil que Cendrars renasceu das cinzas de cineasta fracassado para tornar-se romancista, ainda que seja prudente pôr essa palavra entre aspas.
A amizade Cendrars-Prado, como era de se esperar, alimentava-se de uma recíproca admiração.
Em abril de 1926, no discurso com o qual formalizava a doação de um autógrafo de Anchieta ao Museu Paulista, na presença do amigo que visitava o Brasil pela segunda vez, disse Prado:
"Só no culto dessa paixão (histórica) conseguiremos compreender e realizar integralmente a consciência social, artística e intelectual do nosso Hoje, do nosso Profundo hoje do poeta francês".
Cendrars, às vezes, parece contaminado com algumas idéias do "Retrato do Brasil":
"A política tende universalmente a se tornar revolucionária, isto prova que o clima humano vai mudar e que de racional a política vai se tornar sentimental, instintiva, obscura, feroz..." ("Histoires Vraies").
O surpreendente final do "Retrato do Brasil" já apontava para a inevitabilidade da experiência revolucionária, que seu autor via como única capaz de reconduzir o país ao seu destino histórico. Cendrars apreciava o livro de Prado; ofereceu-se para traduzi-lo em mais de uma carta, esbarrando na determinação do autor de não permitir que sua publicação no exterior se tornasse propaganda negativa do seu próprio país.
O conjunto de cartas é composto de 37 unidades. A literatura que delas emerge é múltipla: memória, crônica, confissão, digressão, libelo, relato de negócios e projetos etc... etc... Já nas cartas iniciais irrompe um misto de lembrança e confissão, temperadas com lirismo, estilo que Cendrars consolidaria a partir de 1929 em "Une Nuit Dans la Forêt", e que lograria cristalizar na sua tetralogia -"L'Homme Foudroyé", "La Main Coupée", "Bourlinguer", "Le Lotissement du Ciel"- que sairia do forno entre 1945 e 49. Na impossibilidade de classificar essas obras, cuja escrita "polímera" oscila como um sismógrafo entre memória, ensaio e prosa poética, Cendrars atribuiu-lhes a categoria algo fluida de "souvenirs". São elas na verdade longas cartas ao leitor desconhecido.
Em Cendrars, vida e literatura se opõem. Seu temperamento inquieto resiste à disciplina do ofício:
"Escrever é uma profissão de burocrata. Que abdicação! É preciso renunciar a tudo o que é imediato..." (carta de 9/11/28).
Ele luta contra as palavras; são a sua "matéria bruta". A literatura que vai aos poucos esculpindo, retirando da bruma espessa das lembranças, reconcilia-o com a vida, que desejava fosse sempre "bem e belamente vivida". Assim, quando a lembrança não consegue superar o real, Cendrars aciona sua imaginação para viver na literatura a vida fabulosa que lhe foi negada pela circunstância.
Nas cartas de Cendrars -involuntários "fragmentos de uma autobiografia"-, o Brasil ocupa um lugar especial. Daqui ele retorna em 1924 com a sensibilidade renovada, "cheio de inquietação, de projetos, sentindo uma força enorme" (carta de 22/11). E os inesgotáveis temas brasileiros vão desfiando o fio da memória, que trabalha embalada pelas "saudades do Brasil". O Aleijadinho, os Bandeirantes, a estatuária negra, Lampião, Febrônio, a Amazônia-"forêt vierge", um assunto puxa outro, ao som de um disco rodando na vitrola, fotos espalhadas pela mesa, a necessidade incontornável de "mato virgem".
"Quando se gasta tempo demasiado viajando, acaba-se tornando estrangeiro no seu próprio país", diz Prado a Cendrars em "Bourlinguer", citando Descartes.
"Não vê o risco que corre? Você já é metade brasileiro. Tome cuidado! Meu país é antropófago. Já absorveu muitos outros antes de você...".
Em 1931, os contornos da experiência brasileira já principiando a esfumaçar, o Brasil vai-se transformando naturalmente no território privilegiado da sua ficção. Surge então a necessidade de questionar, beliscando-se como em meio a um sonho:
"Então São Paulo existe realmente e não apenas na minha imaginação como chego a pensar em certos dias... que Deus o abençoe pelas belas viagens que lhe devo..." (carta de 13/8).
As cartas que escreveu a "mon cher Paul" constituem a prova definitiva de que "a aventura brasileira de Blaise Cendrars" transcorreu sob a égide de Paulo Prado.

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