São Paulo, segunda-feira, 4 de agosto de 1997
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Toda a genialidade cabe numa orelha

GUSTAVO IOSCHPE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vendo a última carnificina praticada pelo nobre Mike Tyson, ocorreram-me duas coisas. A primeira, logo após o término da luta contra Holyfield, foi a de que eu e todos os espectadores do mundo que esperaram horas pra ver um espetáculo de selvageria humana e acabaram presenciando um de selvageria mesmo, sem disfarces, fomos todos uns otários, ludibriados. A segunda só veio algum tempo depois, quando acordei.
Estava toda a família reunida, preocupada e querendo me mandar pra um manicômio por eu, aparentemente, ter passado a noite inteira sofrendo ao tentar morder a minha própria orelha. Aí é que veio o clarão: toda a genialidade humana está na(s) orelha(s). Pois vejamos.
O caso mais célebre de um (des)orelhudo que se deu muito bem foi o impressionista Van Gogh. Ele arrancou sua própria orelha -dizem os historiadores da arte que em uma crise de loucura, mas já li em revistas de fofoca que não teria sido nada mais do que um desejo irrefreável de ficar surdo para as cores gritantes de seus quadros.
Não interessa muito a razão. O fato é que Van Gogh fez de seu sofrimento e sua automutilação uma arte poderosíssima, que, apesar de não ter sido reconhecida durante sua vida, hoje virou prato cheio pros japoneses endinheirados e tem sido vendida por dezenas de milhões de dólares.
Na música, a orelha mais famosa é, paradoxalmente, uma que não funcionava, a de Beethoven. O compositor alemão acabou sua vida de maneira sofrida: não só senil como surdo. Diz-se que compôs sua obra mais magistral -a nona sinfonia- já com a audição extremamente prejudicada e que tinha de encostar o ouvido no tampo do piano para ouvir as vibrações das diferentes notas musicais e, assim, compor.
Ainda no campo das artes, também a literatura tem seus orelhudos famosos. Kafka, um dos três grandes escritores deste século, tinha orelhas lupinas, que talvez fossem as responsáveis pela vida kafkiana que ele levava. E, mesmo que não fossem, certamente davam um ar de exotismo a um menino de cara assustada.
Não é só isso: não fossem as orelhas, nunca conheceríamos a obra de Kafka. As orelhas em questão são de seu amigo Max Brod, que -note o requinte metafórico- não lhe deu ouvidos quando Kafka lhe pediu que queimasse toda sua obra quando morresse.
Em outras áreas mais prosaicas, as orelhas também fazem toda a diferença. Além da queda do gênio do boxe, Tyson, por um carpaccio de orelha, também há uma certa fixação por parte de outros criminosos. É famoso o sequestro do herdeiro da milionária família americana Hearst. Os sequestradores mandaram à família a orelha do fedelho em um envelope, exigindo que pagassem o resgate ou, da próxima vez, enviariam o corpo inteiro. (Em Portugal, aliás, já refinaram essa ameaça: mandam uma orelha desconhecida dentro de um envelope, com o bilhete: "Da próxima vez, ó gajo, vai ser a orelha do teu filho mesmo").
Depois dessa constatação, fiquei pensando se teria algum incidente auditivo em minha vida que me levasse a sonhar com um futuro iluminado. Só lembrei que, durante a infância, minha avó alemã quase ia à loucura quando eu não lhe obedecia, fato que ela creditava a minha pobre audição. Dizia, com o sotaque carregado: "Ach, esde gurri nao ôve, nao há sheido...".
Minha outra avó, russa, também reclamava da minha tagarelice e insistia em dizer que, se Deus me havia dado duas orelhas e uma boca, eu tinha de ouvir mais do que falar. Ao que eu respondia, pra profundo desgosto de minha avó, que esse negócio de Deus era um embuste, Deus não existia.
E a minha vó alemã, com um certo sorriso de triunfo, dizia: "Eu não tisse? E uma prraga, ele naaao ôve". E não teve "sheido".

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