São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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Autoritarismo, pobreza e atraso

JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
DA REPORTAGEM LOCAL

Com "The Pan-American Dream", Lawrence Harrison volta a defender a polêmica idéia de que a América Latina está 50 anos atrás dos EUA por razões culturais.
Para ele, a influência ibero-católica em países como o Brasil favorece o autoritarismo e a injustiça, enquanto o protestantismo valoriza o trabalho e a frugalidade.
Pesquisador do Massachusetts Institute of Technology (MIT), Harrison chefiou cinco missões da Agência Americana de Desenvolvimento Internacional à América Latina.
Sua editora, a Harper Collins/Basic Books, está procurando parceiros para lançar o livro em português. Na semana passada, Harrison concedeu a seguinte entrevista à Folha, por correio eletrônico.

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Folha - Sua teoria contrasta com o mito mais popularizado entre os economistas de que, por meio da globalização da democracia e da liberalização da economia, todos os países avançam em direção à modernidade. Se isso não é verdade, em função de diferenças culturais, quais as consequências da globalização no mundo e no Brasil?
Lawrence Harrison - Acredito que a globalização da democracia e da economia liberal terminará por levar todos os países à modernidade. Mas alguns vão consolidar o pluralismo político e a justiça social mais rapidamente do que outros. Alguns vão atingir índices de crescimento econômico mais altos do que outros. Embora a cultura não seja o único fator que explica esses diferenciais, creio que, a longo prazo, é o mais importante.
Mas quero destacar desde já que a cultura muda -ela não tem nada a ver com raça- e que os países podem acelerar sua modernização, reforçando os valores subjacentes ao sucesso do Primeiro Mundo: por exemplo, a ética do trabalho, educação, frugalidade, avanço baseado no mérito, senso de comunidade, justiça.
Folha - Como o senhor explica o fato de que outros países católicos, tais como França e Itália, se deram tão bem quanto países protestantes em matéria de desenvolvimento humano? Qual é a diferença entre a cultura ibérica e outras culturas católicas européias?
Harrison - A secularização vem demonstrando ser crucial ao progresso dos países católicos. A França e o norte da Itália são secularizados há séculos. No sul da Itália a secularização tem sido muito mais lenta, e essa região se caracteriza por pobreza e autoritarismo muito maiores do que no norte. A secularização tem sido um ingrediente fundamental na modernização da Espanha e de Portugal, da província canadense do Québec e, agora, da Irlanda, à qual alguns políticos irlandeses hoje se referem como sendo "pós-católica".
A cultura ibero-católica tradicional apresentava tendência especial ao autoritarismo, atitudes anti-livre mercado e injustiça. Embora tenha variado de um país a outro, o processo de secularização na América Latina, por exemplo, na educação, tem sido mais lento, de modo geral, do que nos países católicos progressistas da Europa, se bem que tenha se acelerado nas últimas décadas.
Folha - O senhor escreveu que o Brasil apresenta algumas exceções a sua teoria, como, por exemplo, o espírito empreendedor dos imigrantes europeus, que levou ao desenvolvimento industrial aqui. O senhor não acha arriscado demais criar um termo classificatório geográfico amplo, como "ibero-católico"? As culturas e os países latino-americanos não são diferentes demais para isso?
Harrison - O Brasil não representa uma exceção à minha perspectiva sobre a importância da cultura. Está claro que imigrantes alemães, do norte da Itália, japoneses e de outros países que hoje integram o Primeiro Mundo desempenharam um papel desproporcionalmente grande no desenvolvimento do Brasil.
Há diferenças óbvias entre os países latino-americanos, mas as semelhanças são marcantes, por exemplo, com respeito às tradições de autoritarismo e envolvimento militar na política, de injustiça social e de sistemas econômicos "mercantilistas" ou "corporativistas" que tanto contribuíram para essa injustiça.
A análise que o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta faz da família brasileira enquanto fortaleza contra o resto da sociedade se aplica em toda a América Latina. George Foster, um antropólogo norte-americano importante, concluiu que as semelhanças entre países latino-americanos, incluindo o Brasil, pesam mais do que as diferenças. Mas ele certamente concordaria que o Brasil é diferente sob vários aspectos, como eu também argumentei.
Folha - Se o abismo entre latino-americanos e norte-americanos é causado principalmente por diferenças culturais, como o senhor explica o fato de que os imigrantes hispânicos que chegaram nos EUA na década de 70 estejam se saindo tão bem, hoje, quanto os nativos, em termos de renda (segundo o Relatório de População Atual, 1996, do Census Bureau), mesmo mantendo sua religião e cultura? Não seria porque, nos EUA, têm as mesmas oportunidades que os norte-americanos?
Harrison - Os dados do Census Bureau que o senhor cita estão em surpreendente contradição com os dados do Census Bureau recentemente destacados pelo "The New York Times" e o "The Washington Post". Em 1995 os hispânicos se tornaram, como o "The New York Times" noticiou em manchete este ano, os "mais pobres entre os pobres" dos Estados Unidos, com porcentagem de pobreza superior à dos negros. Dentro em breve o número de hispânicos será maior do que o de negros, fazendo deles não apenas a minoria mais pobre, mas também a mais numerosa. O índice de abandono da escola no segundo grau, entre hispânicos, chegou a quase 35% em 1994, mais de duas vezes o índice dos negros, cujo índice de abandono da escola está atualmente próximo ao dos brancos. O "The Washington Post" informou na semana passada que a renda familiar média hispânica em 1995 foi inferior à dos negros e equivalente a 60% da dos brancos.
Folha - Um livro recente editado por Stephen Haber, "How Latin America Fell Behind" (Como a América Latina Ficou para Trás), mostra que a desigualdade de renda entre as Américas do Norte e do Sul não é produto deste século, mas herança dos séculos 18 e 19. O senhor não acha que a histórica dependência financeira de Portugal e da Inglaterra desempenhou um papel importante no subdesenvolvimento brasileiro?
Harrison - Já vi dados que corroboram as conclusões de Stephen Haber. Mas seria incorreto, a meu ver, concluir que o desempenho econômico da América Latina no século 20 tem sido satisfatório. Para começo de conversa, é mais fácil países pobres atingirem altos índices de crescimento do que países ricos fazerem o mesmo, especialmente quando os países pobres têm acesso aos mercados, capitais e know-how dos países ricos. O crescimento latino-americano no século 20 tanto reflete quanto é adversamente afetado pelos altos índices de crescimento populacional. E, o que é o mais preocupante de tudo, o crescimento ainda não resultou em melhoras significativas no bem-estar e nas oportunidades das pessoas comuns. A América Latina continua sendo uma área de distribuição extremamente desigual de renda, riqueza, terras e oportunidades.
Acredito que a "dependência financeira" da Inglaterra, resultado do comércio com ela e dos investimentos britânicos, foi altamente vantajosa para os Estados Unidos, Canadá, Austrália e Argentina, entre outros, no século 19. Esse tipo de relação mutuamente benéfica é muito diferente das relações mercantilistas que Portugal e a Espanha mantiveram com suas colônias. Me sinto encorajado pelo fato de a Teoria da Dependência encontrar-se tão desacreditada atualmente, e de a maioria dos países apreciarem os benefícios do livre comércio e dos investimentos estrangeiros livres. O temor da "dependência", que afastou boa parte da América Latina do mercado mundial e dos Estados Unidos e a aproximou do socialismo, custou muito caro à América Latina.
Folha - Em seu livro o senhor demonstra preocupação diante da crescente população imigrante nos EUA, coisa que poderia levar ao que Michael Lind descreveu como o "abrasileiramento" dos Estados Unidos. Mas a mistura racial no Brasil é algo muito natural, e alguns sociólogos vêem a atitude brasileira em relação à miscigenação como sendo muito aberta e saudável. O que o senhor pensa a esse respeito?
Harrison - A meu ver, os casamentos inter-raciais numa sociedade multirracial são muito desejáveis, e sinto-me muito encorajado quando vejo que os casamentos inter-raciais estão aumentando rapidamente nos Estados Unidos. A longo prazo, podem ser a solução para o problema racial nos EUA.
Folha - Em "The Pan-American Dream", o senhor menciona que o crescimento do protestantismo exerceu um papel importante nas transformações culturais e econômicas ocorridas no Brasil em anos recentes. Além do fato de que os protestantes ainda são minoria, o protestantismo que vem crescendo no Brasil não é o tradicional, mas as novas religiões pentecostais, que pregam que todo o mal vem do demônio. Não é exatamente isso que o senhor acredita ser o problema do ibero-católico?
Harrison - Os sociólogos britânicos David e Bernice Martin, que vêm estudando o fenômeno protestante na América Latina, estimam que cerca de 20% dos brasileiros sejam protestantes, algo em torno de 30 milhões de pessoas. As crenças dos pentecostais são semelhantes às da doutrina católica em alguns poucos aspectos, mas o sistema de valores que eles propagam evoca a ética protestante. David Martin observa: "Os protestantes se destacam pela aversão ao álcool, à promiscuidade e à dança e por seu apego ao trabalho e à mobilidade social".
Folha - Primeiro o senhor critica o presidente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, como sendo um dos autores que criou a Teoria da Dependência. Depois o senhor o elogia por ser líder da atual modernização brasileira. O que senhor acha que mudou no pensamento do presidente e o que motivou essa mudança?
Harrison - Acredito que o presidente Cardoso concluiu que sua defesa anterior da Teoria da Dependência e do socialismo era equivocada, e que o capitalismo democrático é o modo melhor (ou o menos ruim) de organização das sociedades humanas. Sua evolução filosófica/ideológica é semelhante à de muitos intelectuais e políticos latino-americanos.

Tradução de Clara Allain.

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