São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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O pesadelo americano

JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
DA REPORTAGEM LOCAL

Dois livros lançados este ano nos Estados Unidos por acadêmicos de alguns dos mais importantes centros de pesquisa norte-americanos pretendem enterrar a explicação clássica para o atraso socioeconômico da América Latina em relação ao norte do continente.
Com argumentações diferentes, Lawrence Harrison, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), e Stephen Haber, da Universidade de Stanford, sustentam que a Teoria da Dependência está errada.
Eles rejeitam a tese de que os países latino-americanos ficaram para trás na corrida do desenvolvimento por causa de influências estrangeiras. Para ambos, o problema está na própria América Latina, não fora dela.
Mais polêmico e propagandístico, Harrison defende em seu "The Pan-American Dream" (literalmente, "O Sonho Pan-Americano") a hipótese de que a principal causa do subdesenvolvimento dos países hispânicos e do Brasil é a sua cultura.
Segundo ele, a tradição "ibero-católica" é particularmente inclinada ao autoritarismo, à injustiça e contrária ao livre mercado. Em contraponto, Harrison destaca os valores culturais que, afirma, levaram os países do Primeiro Mundo ao sucesso: ética do trabalho, educação e senso de comunidade, entre outros.
Com uma teoria mais acadêmica, Haber apresenta uma longa série de dados analisados por um método que o livro denomina "nova história econômica" para dar sua explicação de como a América Latina ficou para trás -este é, por sinal, o título de seu livro: "How Latin America Fell Behind".
A premissa da coletânea de ensaios organizada por Haber é a de que os EUA abriram uma dianteira em relação aos vizinhos latinos durante o século passado principalmente por causa de leis e meios de transporte mais favoráveis à formação do mercado interno.
"Em 1800, a renda 'per capita' dos EUA era duas vezes a mexicana e quase igual à brasileira. Em 1913, o Produto Interno Bruto 'per capita' americano era quatro vezes maior do que o do México e sete vezes superior ao do Brasil", constata o livro.
Apesar de apresentarem pontos de vista muito diferentes em seus textos, tanto Haber quanto Harrison descartam a Teoria da Dependência, que deixou famoso o sociólogo Fernando Henrique Cardoso.
Em entrevista à Folha por correio eletrônico (leia à pág. 5-6), Harrison escreve que a Teoria da Dependência perdeu sua reputação hoje e que os países latino-americanos aprenderam a apreciar o livre mercado e os investimentos externos.
"O medo da 'dependência', que levou muitos dos países latino-americanos para longe do mercado mundial e dos EUA, e os aproximou do socialismo, foi extremamente custoso para a América Latina", afirma.
Haber vai mais longe. Para ele, a adoção de uma tese contrária à elaborada por Fernando Henrique é uma tendência no meio acadêmico. Em entrevista à Folha, também por e-mail (leia à pág. 5-6), o vice-diretor de Ciências Sociais de Stanford é categórico:
"Nos anos 70 e 80, a Teoria da Dependência foi o ponto de vista dominante para as causas do subdesenvolvimento latino-americano. Não há virtualmente nenhum acadêmico sério da América Latina que ainda acredite que a dependência pode explicar o fosso de desenvolvimento entre as maiores economias latino-americanas e os EUA".
A dura crítica dos norte-americanos ao trabalho do sociólogo se transforma em elogio ao desempenho de Fernando Henrique como presidente. "A abertura da economia ao comércio exterior e à entrada de capital estrangeiro aponta para outro caminho: a rejeição ao principal preceito da dependência", afirma Haber.
Harrison apresenta uma explicação para essa guinada de Fernando Henrique. "Acredito que o presidente Cardoso tenha concluído que sua defesa da Teoria da Dependência e do socialismo estava errada e que o capitalismo democrático é o melhor (ou menos ruim) caminho para organizar as sociedades humanas."
E acrescenta: "Sua evolução filosófica/ideológica é semelhante à de vários outros intelectuais e políticos latino-americanos".
Apesar de estarem em ascensão, as visões apresentadas nos livros de Haber e Harrison estão longe de serem unânimes, mesmo entre intelectuais da América do Norte.
O canadense Ted Hewitt, vice-diretor do departamento de sociologia da Universidade de Western Ontário, por exemplo, é um dos críticos à idéia de que diferenças culturais bastam para explicar a defasagem socioeconômica latino-americana.
"A Teoria Cultural é muito popular, algo que muitos gostariam de ouvir nos EUA. Mas, na verdade, as coisas não são tão simples assim. A América Latina sofreu desvantagens que atrapalharam seu desenvolvimento", disse Hewitt em entrevista à Folha, por telefone.
"Não acredito na Teoria da Dependência, mas reconheço que muitas coisas de que ela fala atrapalharam o desenvolvimento da América Latina, assim como questões culturais, econômicas e até geográficas, como a distância dos mercados europeus".
Pesquisador especializado no Brasil, o canadense lembra que a explicação com ênfase na cultura "ibero-católica" não é nova. "Nos anos 50, 60, Frank Tannenbaum já dizia isso".
Em sua resenha sobre o "Pan-American Dream", o brasilianista norte-americano Kenneth Maxwell anota logo na abertura: "É curioso como as interpretações culturalistas sobre as diferenças do desenvolvimento humano estão novamente em voga nos EUA no final do século 20, assim como estavam quando o século começou".
Com ironia, ele resume o argumento de Harrison em uma frase: quanto mais os latinos se tornarem norte-americanos, melhor funcionará a integração regional, "a menos, é claro, que nós nos tornemos como eles (latinos)".
"Quem estudou o Brasil sabe que o brasileiro é trabalhador. Tem vontade de ir para frente. A América Latina tem empreendedores, mas enfrentou problemas financeiros e até dificuldades para entrar no mercado dos EUA (por protecionismo), por exemplo", acrescenta o canadense Hewitt.
"Os pequenos fazendeiros exigem mais liberdade e democracia. Já a América Latina virou uma sociedade de elites que, de certo modo, não queriam desenvolver seus países. Quando a população está subordinada às elites, ela não participa da vida política do país", afirma.
Ele cita um exemplo doméstico canadense: "Até os anos 60, Québec era uma sociedade elitista, e a província se tornou atrasada do ponto de vista socioeconômico". Coincidência ou não, Québec foi colonizada por latinos (franceses).
As discordâncias prosseguem entre os próprios autores. Harrison reconhece ter visto dados que corroboram as conclusões de Haber -de que a América Latina perdeu o bonde da história no século passado.
Mas logo ressalva: "Seria incorreto concluir que a performance econômica da América Latina no século 20 tenha sido satisfatória. É mais fácil para os países pobres atingirem altas taxas de crescimento, particularmente quando têm acesso aos mercados, capital e know-how dos países ricos".
Sobre as teses de Harrison, de que a cultura ibero-católica é a causa do subdesenvolvimento, Haber afirma: "Não estou certo de que seja verdade. A França, afinal, é um país católico. Há ainda um bom número de países que, sob o domínio britânico, não se desenvolveram, como a Índia".
Certas ou erradas, novas ou requentadas, as teorias norte-americanas sobre as razões do subdesenvolvimento latino-americanos são cada vez mais relevantes diante da perspectiva de formação de um bloco econômico continental.
Se não por outro motivo, porque, sendo os EUA cada vez mais hegemônicos no cenário mundial, sua visão sobre o passado e o futuro dos vizinhos latinos tem grande chance de ser a mais propagandeada no processo de globalização.
Não por acaso, em seu "Pan-Americam Dream" Lawrence Harrison embute uma crítica à maneira como o Departamento de Estado dos EUA está conduzindo as negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).
Com a experiência de quem chefiou cinco missões da Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional entre 1965 e 1981, ele diz que os EUA devem resistir à sua tendência histórica de anunciar grandes iniciativas, como a Aliança para o Progresso.
"(Os EUA) devem trabalhar em silêncio e persistentemente por um progresso passo a passo na consolidação de instituições democráticas, abertura dos mercados e a integração das economias do hemisfério", sugere.
Em outras palavras, ele recomenda, mais do que a grandiloquência da Alca, uma política de agregação individual de países ao Nafta (mercado comum que inclui EUA, Canadá e México).
Ao final de sua teoria, Harrison encontra os EUA e o Canadá "mais compatíveis, mais confortáveis" um com o outro, com a Europa e até com os países asiáticos do que com a América Latina.
Apesar das guinadas recentes dos países latino-americanos para a economia de mercado e a democratização, Harrison aposta que essa transformação ainda vai precisar de mais uma década para se consolidar.
Até lá, o Brasil e seus vizinhos hispânicos correm o risco de, se prevalecer o ponto de vista de Harrison, permanecerem na periferia mundial. Com globalização e tudo.

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