São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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Apenas 600 gramas

GILSON SCHWARTZ

Nosso cordão umbilical era do tamanho do Minhocão, era o próprio Minhocão. Mãos trêmulas, coração apertado, era eu em geral quem dirigia o carro até o Bixiga, onde o Pedro Felipe foi registrado um dia depois do parto. Ele depois virou personagem de livro, ancorou dedicatórias, animou rodas de mobilização espiritual.
Vencidos os congestionamentos, o burburinho dos teatros, dos restaurantes, os buracos interminavelmente torturantes para minha mulher mal saída da cesariana, a dúvida voltava com força ainda maior na portaria da maternidade: Pedrinho estaria vivo? No corredor até a UTI a angústia beirava a alucinação. Estaria respirando?
O parto foi uma operação de resgate, com alto risco para a mãe e a criança de 600 gramas, vinda ao mundo dois meses antes do tempo regulamentar. Viriam ainda 70 dias de incubadora.
Mas ainda antes das máquinas, dos coquetéis de antibióticos e do sorteio diuturno de veias invisíveis, nos momentos em câmara lenta entre a mesa cirúrgica e a microcama onde amarraram seu cordãozinho infinitesimal, as luzes todas daquela sala asséptica me pareceram poucas.
Entre o escuro do meu medo e a mãe, ainda anestesiada e retalhada, eu via uma clareira enorme que se abria, rasgada por uma luz intensa que vinha de cima e iluminava por dentro.
Um grito agudo e longo invadiu meu transe. O pequeno grito humano silenciou a equipe. Hipnotizou as enfermeiras.
Enorme, estridente, ele fazia eco nos bisturis, nas bacias com restos de placenta esfarrapada, nos azulejos e luminárias.
Onde? Como? Então vive? Ali, na sala ao lado... O pediatra debruçado sorria: "Este é macho mesmo"... "O bichão é forte!"...
O bichão, olhos arregalados engolindo o mundo, cabeça pouco maior que uma chupeta, pés menores que a última falange do meu polegar, gritando, possante, iluminado, era meu filho.
Não saí do transe até agora.

(Gilson Scwartz, 37, é economista, da Equipe de Articulistas da Folha. Pedro está com 8 anos)

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