São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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Pai em 48 horas

JOSIAS DE SOUZA
Normalmente, o homem inicia a aventura da paternidade enroscado em lençóis, preso nos braços de uma mulher. Comigo não foi bem assim.
Comecei a virar pai em uma sala obscura, nos fundos do 14º Departamento de Polícia de São Paulo. Vejam vocês: a pequenina Thaís, hoje com 3 meses e 17 dias, começou a esqueirar-se pelas frestas de meu mundo no lugar mais improvável -o número 372 da Rua Deputado Lacerda Franco, uma delegacia asqueirosa. Mas tenham calma. Não me interpretem mal. Logo me explicarei.
O segundo estágio da vida de um pai costuma desenrolar-se na sala de espera de uma maternidade. Meio atordoado, o sujeito fuma um cigarro atrás do outro. Até que a enfermeira aparece. E anuncia: "é menino". Ou então: "é menina."
Comigo foi diferente. Recebi o primeiro informe sobre Thaís na cozinha. Estava de pé, pendurado ao telefone. Tinha a geladeira à minha esquerda. Deu-se no último dia 8 de julho.
Já era mais de duas horas, quase três da tarde. A campainha do telefone, implacável, arrancou-me da mesa com o almoço pela metade. Abandonei no prato um bom naco de bife acebolado. Na outra ponta da linha, uma voz feminina, algo delicada, falava desde a Vara da Infância e da Juventude.
-O juiz concordou em entregar a criança para vocês.
A frase como que interrompeu a "gestação" iniciada no 14º DP. Estávamos decididos, eu e minha doce Liliane, a adotar uma criança. Por isso estive na delegacia, para encomendar um atestado de bons antecedentes, documento exigido pela burocracia estatal. Não sabia então como seria meu filho. Menino? Menina? Branco? Negro? Não sabia quando chegaria. Nove meses? Um ano? Dois?
Deliciei-me com o retrato de Thaís, que me chegava pelo fio do telefone. Cheguei a imaginar a funcionária da Vara de Adoção metida em um uniforme de enfermeira. Era como se houvesse discado da maternidade.
O barulho de talheres roçando na louça do prato devolveu-me à realidade. Minha mulher não estava na mesa de operações. Continuava na mesa do almoço.
Reencontrei-a quando levava à boca uma porção de legumes. E pintei o bebê diante de seus olhos: ela nascera a 28 de abril, 20h27, em um módulo do PAS. Era salubérrima. Pesava 3,8 Kg. Media 47 cm. A mãe a abandonara. Não era nem branca nem negra. Segundo as anotações do fórum, era parda. Chamava-se Thaís por escolha de uma escrivã. Gostei do nome.
Após aquele telefonema, tudo aconteceu numa progressão implacável. O dia seguinte, 9 de julho, quarta-feira, seria um feriado. A criança nos seria entregue já na quinta, dia 10. Ou seja, eu viraria pai dali a escassas 48 horas. Liliane dividia-se entre a estupefação e a incredulidade.
-Será que vai mesmo acontecer?
Havíamos visitado duas varas de adoção, uma em São Paulo e outra em Curitiba. Relatos verbais já não nos bastavam. Nossa ansiedade exigia uma Thaís de carne e osso, que pudesse ser tocada, ninada.
Na quarta-feira, desabamos sobre o orfanato. Ficava nos arredores da humilde Vila Nova Cachoeirinha, o bairro de minha infância. Morei na Cachoeirinha até os seis anos. Depois, mudei-me para Brasília. Meu pai, um bom serralheiro, foi convidado a dar forma à capital dos sonhos de Juscelino. Levou consigo a família.
Quis o destino que, após 28 anos de cerrado, eu retornasse à paulicéia. Caprichoso, o destino também quis que, após um ano e meio de poluição, eu voltasse à velha Cachoeirinha.
Chegamos ao orfanato. Passos ligeiros, escalamos a escada que conduzia ao segundo piso. Thaís estava no berço. Liliane segurou-a nos braços. A criança, tão miudinha, esboçou um sorriso. Gostei dela. Analisei-a com vagar: cabelos negros e fartos, olhos de jabuticaba.
Na quinta-feira, dia 10, fomos à Vara da Infância e da Adolescência. Assinamos um papelório e obtivemos a guarda provisória de Thaís. O processo de adoção correria o seu curso. Saímos com uma autorização para retirar a menininha do orfanato. Após comprarmos leite, mamadeira, fralda e artigos do gênero, voamos para lá. Chegamos às seis e quinze da tarde. Thaís saía do banho. Pude vê-la peladinha. Pareceu-me ainda mais miúda. Vestiram-na com um macacãozinho vermelho. "Trouxe de minha casa", disse Elza, a mulher que cuidava do orfanato. "Foi de minha neta".
Entramos no carro. Liliane enfiou-se no banco de trás, com nossa filha. Sim, começava a me sentir como pai de Thaís. A passagem pelo 14º DP e a notícia recebida na cozinha já não tinham relevância. Eram detalhes. Algo a ser compartilhado mais tarde, entre risos, com a própria Thaís e com meus netos.
À medida que a imagem do orfanato ia sumindo no retrovisor do carro, encurtavam-se para mim as distâncias entre a paternidade biológica e a adotiva. Era como se Thaís houvesse saltado de minhas próprias entranhas. Uma certeza se cravou em mim: éramos uma nova família.
A Marginal Tietê estava um inferno. O trânsito fluía lento, atravancado. Alheia aos solavancos e à buzinação, Thaís deixou-se ficar nos braços de Liliane. Não poderia estar em melhores mãos, diga-se. Minha sempre doce mulher se revelaria uma mãezona. Com o seu silêncio, a filha parecia aprovar o novo colo. Adormeceu. E só acordou mais tarde, já na sala de nosso apartamento, envolta em um novo cenário.
Desde então, frequento o admirável mundo novo da paternidade. Um mundo, é preciso que se diga, em que o bom-senso e o ridículo vivem se roçando. Comecei a travar acaloradas discussões acerca das vantagens do Hipoglós sobre o Proderm no combate às assaduras. Ou das fraldas Pampers sobre as Johnson&Johnson na capacidade de absorção de xixi.
No mundo da paternidade, um bom debate sobre a consistência do coco do bebê é quase tão importante quanto uma troca de idéias sobre o câmbio ou a reeleição de Fernando Henrique. Disse quase tão importantes e já me corrijo. É mais importante.
A propósito, ia me esquecendo. Thaís passa bem. Já pesa 5,1 Kg. Seu coco é, como direi?...hummmm... pastoso. Estarei sendo ridículo? Ah, pouco importa. Sou pai.

(Josias de Souza, 35, é secretário de Redação da Folha)

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