São Paulo, segunda-feira, 11 de agosto de 1997
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Betinho, o militante da utopia

FREI BETTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Utopia é sonhar acordado. Quem incutiu em Betinho e em toda uma geração de jovens cristãos a arte da utopia foi meu confrade, frei Mateus Rocha, a quem Betinho considerava seu "pai espiritual".
Em 1959, conheci Betinho na JEC (Juventude Estudantil Católica), em Belo Horizonte. Ele ingressava na JUC (Juventude Universitária Católica), aprovado no vestibular de sociologia, enquanto seu irmão Henriquinho -mais tarde, Henfil- e eu atuávamos entre os secundaristas, aprendendo com frei Mateus e frei Chico que cristão rima com revolução, sexo não é pecado e Deus tem sabor de justiça.
Todas as tardes nós nos encontrávamos no "chá das seis", como era conhecido o encontro dos militantes cristãos à porta da igreja São José, no centro da capital mineira. Ali conspirávamos e debatíamos as estratégias para mudar a sociedade pela força da fé: Vinicius Caldeira Brant, Hugo Amaral, Paulo Haddad, Marcelo Guimarães, Nassim Mehedeff, Tomás Aroldo da Mota Santos, Humberto Pereira, José Alberto Fonseca, Rafael Guerra, Jair Ferreira de Sá e tantos outros. Enquanto a missa não tinha início, analisávamos a conjuntura do mundo, do Brasil, de Minas, até a hora de entrar no templo para receber a comunhão.
Betinho era o líder, o mais perspicaz, o mais sagaz. Muito magro, com um sorriso esperto, sobressaía-se por sua inteligência. Era o estrategista de nossas lutas estudantis. Nunca chegou a presidente da UNE, mas levou ao cargo Vinicius Caldeira Brandt, Aldo Arantes e José Serra.
No Rio, no início dos anos 60, costumava hospedar-se no apartamento em que eu morava, na esquina das ruas Laranjeiras com Pereira da Silva. Era uma república de estudantes, todos militantes cristãos, que dividiam o pequeno espaço: Osmar Fávero, Luiz Eduardo Wanderley, Paulo Eduardo Arantes, José Roberto Soeiro, Júlio Olímpio Mourão Filho, Celso Guimarães e outros.
Por falta de cama, Betinho dormia no sofá da sala. Lembro que ele flagrou "Mororó", estudante nordestino, usando sua escova de dentes. "Esta escova é minha", protestou. "Eu sei", reagiu "Mororó", com a boca cheia de espuma, "mas não tenho preconceito". Betinho tomou-a: "Mas eu tenho!"
Então, ele já era dirigente da Ação Popular, organização de esquerda derivada da JUC e que tinha sua inspiração nas obras do padre Henrique Vaz S.J. Pela primeira vez, a geografia da esquerda brasileira ganhava uma vereda não-comunista.
O PTB fizera de tudo para que Betinho nele ingressasse. Quando João Goulart chegou à Presidência da República, a turma do "chá das seis" deu os primeiros passos na direção do poder. Betinho tornou-se chefe de gabinete do ministro da Educação, Paulo de Tarso Santos, e frei Mateus, reitor da Universidade de Brasília quando Darcy Ribeiro passou à Casa Civil. No ministério, Betinho conspirava em favor do projeto de alfabetização de adultos de um jovem professor pernambucano: Paulo Freire.
O golpe militar de 1964 levou toda uma geração à prisão, à clandestinidade ou ao exílio. No dia 6 de junho, o Cenimar promoveu, no Rio, o "arrastão da AP". O apartamento das Laranjeiras foi invadido e todos nós, presos. Fomos conduzidos para a Ilha das Cobras. No interrogatório, levei uns sopapos até convencer um oficial da Marinha de que, apesar das coincidências de apelido e trajetória, eu não era o procuradíssimo líder da AP.
Clandestino em São Paulo, Betinho confiou-me o acesso à sua casa, no Sumaré, atrás da igreja Nossa Senhora de Fátima, em cujo átrio ele marcava os "pontos" da organização. Depois, ele "partiu num rabo de foguete", para só retornar com a abertura democrática. No convento dominicano de São Paulo, conversamos sobre seu projeto de fundar o Ibase. Fiz a ponte entre ele e o cardeal Arns, que abençoou a iniciativa.
O resto, todos sabemos. Indicado por Lula, Betinho tornou-se a figura-símbolo no Conselho de Seguridade Alimentar, que desencadeou a campanha contra a miséria e a fome. Se Betinho foi um Quixote, seus moinhos não eram de vento. Estavam abarrotados de grãos e tinham suas chaves em mãos do governo federal.
FHC tentou cooptar Betinho. Nomeou-o para o programa Comunidade Solidária. Betinho sabia que os moinhos eram reais e, do lado de fora, a comida escassa. Retirou seu voto de confiança no governo tucano e denunciou a demagogia na área social.
A grande luta de Betinho foi pela vida -dele e de todos. Uma transfusão criminosa de sangue, em 1986, levou-o a contrair o vírus HIV. O mesmo ocorreu com seus irmãos Chico Mário e Henfil.
Foi o descaso oficial com a saúde que matou Betinho, irmanado a tantas vítimas anônimas da indiferença do poder público. Uma trágica ironia: o país que ele queria salvar condenou-o à morte pelo sangue contaminado. Agora, ele retorna à clandestinidade. Do outro lado da vida, ele com certeza ajudará a todos nós que seguimos lutando para que a utopia prossiga viva.
A Deus, Betinho!

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