São Paulo, terça-feira, 12 de agosto de 1997
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O legado de Betinho

LUÍS NASSIF

A perspectiva da morte traz sabedoria ou desespero. São muitos os casos de quem passou pelo coma, sentiu de frente o hálito pesado da morte, renasceu, e voltou sábio, objetivo. E há os que, em se sabendo condenados, entregam os pontos.
Há os poucos que, correndo contra o relógio, buscam com ansiedade a perenização. Querem deixar a herança, filhos, obras ou exemplos. É o caso de Betinho.
Antes de experimentar a morte, Betinho era um dos ícones da esquerda. Não apenas isso. Junto com o irmão Henfil, era um cultivador da intolerância, como éramos todos, essa grande frente de oposição ao regime que se formou ao longo dos anos 70.
Nessa batalha sem quartel, problemas sociais não eram alvo de solidariedade, mas instrumentos para combater o inimigo.
Nossos padrões culturais, nos anos 60 e 70, a visão militarista que caracterizava parte relevante das esquerdas, consistia em aguardar, até torcer pelo agravamento das questões sociais, pois residia ali a munição que seria acumulada na grande luta final contra o imperialismo.
Com a redemocratização e os avanços políticos da segunda metade dos anos 80, especialmente nos anos 90, esse quadro foi mudando para parte das oposições, não para todos.
Com o aprofundamento do federalismo, com o fim do poder absoluto do Executivo, com a abertura e o amadurecimento gradativo da democracia, o país passou a ser nosso, de cada pessoa no aprendizado duro, porém definitivo, de se saber parte de um todo, de estar colocando seu tijolo na construção definitiva da nacionalidade.
Centralismo
Foi uma caminhada dura, principalmente em uma sociedade que cultivou o centralismo em todas as instâncias. Ainda hoje, persistem anacronismos inacreditáveis, de se atribuírem todos os vícios ou todos os méritos do país à figura do presidente da República -que não passa de um personagem, relevante, é claro, mas um apenas, de um jogo de reconstrução que é muito mais amplo e participativo.
Como em todo processo de amadurecimento, primeiro há a tomada gradativa da consciência. Depois, os episódios exemplares, que marcam e aceleram o processo.
Nenhum desses episódios foi mais relevante que a conversão de Betinho à chamada agenda positiva. Tudo bem que sou socialista, tudo bem que espero que no futuro possa se ter uma pátria socialista, mas não vou abrir mão de minha responsabilidade de ajudar a minorar o sofrimento dos excluídos -foi o grito de libertação que se ouviu.
Essa palavra feíssima para a esquerda -o "assistencialismo"-, esse ato paternalista que apenas "atrasava" o caminho da revolução, foi assumido em toda sua plenitude por Betinho. Continuou socialista, mas quis deixar resultados concretos. Optou pelo investimento no fim da miséria, não pela instrumentalização da pobreza.
Depois disso, tornou-se ícone nacional sem deixar de ser ícone das esquerdas. Muitas vezes, inebriou-se com o poder de divulgação de idéias que passou a dispor. Cometeu análises que muitos consideraram equivocadas, cedeu aqui e ali a algum arroubo que outros acharam um tanto demagógico.
Nada que não estivesse dentro da dimensão de um homem, não de um santo, nada que conspurcasse seu idealismo e sua imagem.
Morre como símbolo de todos os brasileiros, como representante máximo da sociedade civil, como o homem que despertou o país para a realidade de que o combate à miséria é responsabilidade de todos, não apenas do governo.
Morreu como um dos símbolos máximos da mais decisiva década da história do Brasil.

E-mail: lnassif@uol.com.br

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