São Paulo, terça-feira, 12 de agosto de 1997
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64 foi um pesadelo de realidade que pode voltar

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"O que é o 'eterno retorno' de Nietzsche? Será que eu vou ter de assistir o 'Holiday on Ice' de novo?"
Woody Allen

Saiu um livro sobre 1964: "Visões Críticas do Golpe", pela editora da Unicamp. Eu não li o livro, mas como eu estava dentro da UNE pegando fogo no 1º de abril e quase morri queimado, como senti, nesse dia, que a vida real começava, meto minha colher.
O golpe de 64 aconteceu porque nós não existíamos. Éramos uma ilusão. A esquerda era uma ilusão no Brasil. (Já imagino as "cerdas bravas do javali" se eriçando em alguns cangotes.) Pois não existíamos. Mas existia o quê?
Existia uma revolução verbal. A ideologia "revolucionária" era um ensopadinho feito de JK, Marx, Getúlio, ISEB e sonho. Existia uma ideologia que nos dava a sensação de que o "povo do Brasil marchava conosco", um "wishful thinking" de que éramos o "sal da terra".
Havia a crendice de que nossos inimigos estavam todos "fora" de nós e fora das estruturas políticas arcaicas (até hoje é difícil arrancar isso de dentro das cucas fóbicas).
Existia um "bacalhau português" em nosso discurso, um forte ranço ibérico em nossa ideologia "franco-alemã": o amor ao abstrato, ao Uno totalizante. A população nem sabia que existíamos. Não havia nenhuma base material, econômica ou armada, "condições objetivas" para qualquer revolução. Por trás de nossas utopias, o Brasil escravista e patrimonialista dormia a sono solto.
Éramos uma esquerda imaginária, delegando ao Estado a tarefa de fazer uma revolução contra o Estado. Como sempre em nossa história, até nas revoluções precisamos do governo.
Havia apenas um sindicalismo de pelegos e dependentes do presidente, que deu a grande festa de 13 de março (o comício da Central, com tochas da Petrobrás e clima soviético). Eu estava lá, olhando para Theresa Goulart, linda de vestido azul e coque anos 60, e vendo depois, um calafrio na espinha, as velas acesas em protesto em todas as janelas da classe média reacionária, do Flamengo até Ipanema. Essa era a verdadeira "sociedade civil" que acordava.
Hoje, acho que o único que sacava a zorra toda era o próprio Jango, o mais brasileiro, mais sábio, que preferiu o exílio, já que não pôde segurar o trem, entre os gritos de Darcy Ribeiro falando do "Brasil, nossa Roma tropical!". Havia uma espécie de "substituição de importações" dentro da alma: a crença de que éramos "especiais" e de que podíamos prescindir do mundo real, fazendo uma revolução pela vontade mágica.
Só analisávamos a realidade ideologicamente quando tínhamos de vê-la também "antropologicamente", incluídos nela. Nossa esquerda era tão iludida que acabou virando apenas uma provocação que pariu o autoritarismo multinacional. Foi tudo tão ilusório, tão louco, que cheguei já a pensar que a CIA estimulava o CPC.
Mas o que existia, então?
O mundo das coisas
Existiam os outros. Os "outros" surgiram do nada. Surgiram categorias esquecidas pelos "ideólogos". O óbvio de nossa cultura pipocou do "nada" em 64. Fantasmas seculares refloriram.
Surgiu uma classe média reacionária e burra, que sempre esteve ali. Surgiu um Exército autoritário e submisso às exigências externas. Ficamos conhecendo a ignorância do povo (que idealizávamos), descobrimos que a resistência reacionária de minhas tias era igual à dos usineiros e banqueiros.
Descobrimos a burocracia endêmica, a "burguesia" nacional adesista a qualquer grana externa (que achávamos "progressista"). Descobrimos o óbvio do mundo.
A sensação que eu tive (pobre idiota jovem...) não foi de derrota. Foi de acordar de um sonho para um pesadelo. Um pesadelo feito de milicos grossos, burrice popular e pragmatismo de gringos do "mercado". (Foi inesquecível o surgimento de Castelo Branco, feio como um ET, de boné verde na capa de "O Cruzeiro".) Um pesadelo feito de realidade.
E agora, outra "heresia" (mais cerdas eriçadas): eu acho que 64 foi bom para nos acordar. Foi uma porrada necessária. Foi o início de uma possível maturidade.
Despertamos para a bruta mão do "money market", que precisava nos emprestar dinheiro, para que o Estado pós-getulista-verde-oliva-burro avalizasse a instalação das multinacionais aqui. Ou vocês acham que iam nos emprestar cem bilhões de dólares para o Jango fazer a reforma agrária com o Darcy? Aprisionaram-nos para contrairmos a dívida como, 20 anos depois, nos libertaram para pagá-la.
O ano de 64 ensinou que o buraco é muito mais embaixo. Em 64, vimos que a esquerda tinha "princípios" e "fins", mas não tinha "meios". Como até hoje teima em não ter.
Em 64, descobrimos que o mundo anda sozinho, independe de conspirações individuais. Claro que a CIA armou coisas com direitistas daqui, mas foram apenas os parteiros do desejo material da produção. Nossos paranóicos acham que o neoliberalismo é uma trama da IBM e da Microsoft em Washington.
1964 foi um show de materialismo histórico. Mas ibérico não gosta de ver essas coisas. E logo tapamos os olhos e nos consideramos as "vítimas" da ditadura, lutando só pela "liberdade" formal. E não víamos que faltava liberdade "real" em nossas instituições políticas.
Com 64, poderíamos ter descoberto que um país sem sociedade organizada morre na praia. E deveríamos ter descoberto que não adianta nada analisar os "erros" de nossa esquerda "revolucionária", como se fossem erros episódicos, veniais. A esquerda no Brasil tem de ser repensada "ab ovo", pois é impossível trancar a complexidade de nossa formação nacional numa falange unificada.
1964 devia nos lembrar que uma esquerda aqui tem de ser antiimperialista sim, mas também dialogal, aliancista, atenta aos vícios culturais do país, complexa e libertada da "ganga impura" do patrimonialismo autoritário.
Como os USA lutaram contra o racismo, Vietnã, direitos civis, temos de lutar dentro da democracia. Nossa formação nos condena à democracia. O tempo não pára, e as forças produtivas do mundo continuarão agindo sobre nossa resistência colonial. Esse fluxo material da produção é irreversível e chegará ou pela democracia ou pelo autoritarismo. Se não vier dosado, criticado, virá como liberalismo selvagem, garantido por um novo fascismo caboclo, como foi em 1964.
Quando entenderemos que a verdadeira revolução brasileira tem de ser endógena, democrática, porque as instituições seculares são escravistas e autoritárias?
O medo da "globalização neoliberal" (ahh...palavras mágicas da hora...) desloca o alvo do problema: o verdadeiro objetivo da esquerda deve ser a velha estrutura escravista e burocrática do país. Graças a Deus, o Estado faliu e não poderá avalizar novas ilusões.
E aí vai o terceiro eriçamento das "cerdas bravas do javali": um banho de "liberalismo" pode ajudar a sanear essa "bosta mental sul-americana", como disse Oswald de Andrade.

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