São Paulo, sexta-feira, 15 de agosto de 1997
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SAMUEL BECKETT

MORRIS DICKSTEIN
DO "THE NYT BOOK REVIEW"

Não é difícil adivinhar por que o mais recente biógrafo de Samuel Beckett, Anthony Cronin, o descreve como "o último modernista". Quando "Esperando Godot" estreou em Londres, em 1955, Kenneth Tynan observou: "Não tem trama, não tem clímax, não tem desfecho; nem começo, nem meio, nem fim".
Se o modernismo libertou o escritor da narrativa convencional e da psicologia ordinária, os romances e peças de Beckett levaram o modernismo até onde podia ir.
Mas "Esperando Godot" foi um entretenimento leve, comparado com o que seguiu. Como as esculturas anoréxicas de seu amigo Giacometti, a obra de Beckett foi se tornando cada vez mais austera e minimalista, mantendo boa parte de seu poder hipnótico, ao mesmo tempo que quase chegava a desaparecer.
Embora Beckett tenha vivido até 1989, ele pertence, cronológica e espiritualmente, a uma era muito anterior. Nascido em 1906, encaixa-se facilmente com escritores como Vladimir Nabokov, William Faulkner, Henry Miller...
Todos eles foram modernistas de segunda geração que chegaram à cena literária no final dos anos 20 e início dos 30, pouco depois que Eliot, Joyce, Kafka e Proust escreveram suas maiores obras.
Presos entre as angústias da influência e as incertezas da crise política e econômica, adotaram um humor sombrio, amargo e zombeteiro que iria transformar-se numa das maiores expressões literárias dos anos da Grande Depressão.
Beckett parecia ser o último dessa geração, não apenas por ter continuado escrevendo por tanto tempo, mas também porque demorou a encontrar a própria voz.
Foi só depois da guerra que concretizou sua síntese inteiramente original entre as explorações da memória de Proust, a virtuosidade linguística e as excentricidades eruditas de Joyce, o fascínio dos surrealistas com a lógica dos sonhos e o profundo senso de esterilidade e bloqueio de Eliot e Kafka.
Esses escritores estavam no ar em 1928, quando Beckett chegou a Paris e, em pouco tempo, ligou-se ao círculo em torno de Joyce e da revista de vanguarda de Eugene Jolas, "Transition".
Cedo, Beckett chegou a uma perspectiva extremamente inóspita da vida e à consciência de seu próprio temperamento mórbido e desapegado.
Mas a ficção e a poesia que produziu a seguir foram cerebrais demais e, ao mesmo tempo, autobiográficas demais para exercer grande impacto. Ele provavelmente acumulou mais rejeições de editores do que qualquer outro grande escritor do século 20.
"Samuel Beckett - The Last Modernist" (Samuel Beckett - O Último Modernista), de Anthony Cronin, chega logo após "Damned to Fame" (Condenado à Fama), de James Knowlson, uma biografia exaustiva autorizada pelo próprio Beckett, que se beneficiou de cinco meses de entrevistas reveladoras concedidas pelo autor pouco antes de sua morte.
Sabor real
Mas se "Damned to Fame" foi um exemplo definitivo de erudição redigido por uma das maiores autoridades no assunto, a biografia que Cronin nos oferece um trabalho com sabor real de romance, produzido por um escritor irlandês que conheceu tanto Beckett quanto seus colegas de Dublin.
O meio irlandês de onde Beckett surgiu é transmitido com grande realismo.
Knowlson escreve, na maior parte do tempo, como defensor de Beckett, enxergando sua vida como um avanço constante em direção à grande literatura. Mas Cronin, que se baseia em grande medida nas cartas de Beckett e em suas primeiras obras de ficção, presta mais atenção aos desvios, hesitações e fracassos.
A narrativa dinâmica de Cronin, sua caracterização arguta e seus vislumbres de insight crítico tornam Beckett mais acessíveis ao leitor leigo.
Uma qualidade louvável dessa nova biografia é o retrato sagaz e convincente que traça das diversas etapas na transformação de Beckett, de escritor regional excêntrico e acanhado a escritor mais universal -desde sua criação convencional num subúrbio protestante de Dublin até o início de sua carreira acadêmica de professor de francês no Trinity College.
Externamente, a vida de Samuel Beckett não teve grandes altos e baixos. Seu temperamento era calmo; uma de suas amantes, a tempestuosa Peggy Guggenheim, o chamava de Oblomov, palavra usada na literatura russa para indicar inércia.
Mesmo o corajoso trabalho que desenvolveu para a Resistência não parece lhe haver exigido muita ação concreta, embora em Paris tenha corrido graves riscos pouco antes de sua fuga.
Demônios
Mas o drama na vida de Beckett estava em outro lugar, na luta com seus demônios interiores: na ambivalência swiftiana em relação ao corpo, na preocupação com o declínio e a incapacidade e em seu senso de isolamento total.
O próprio ato de escrever lhe despertava conflitos profundos, que descreveu, certa vez, como sendo o paradoxo do artista para quem "não há nada a exprimir, nada com o que exprimi-lo, nada a partir do qual exprimir, e, ao mesmo tempo, a obrigatoriedade de exprimir".
Depressivo, pouco à vontade em seu próprio corpo, apesar de bem-sucedido como atleta na juventude, pouco à vontade com todos, menos com um punhado de pessoas em quem confiava, Beckett tinha a sensação de ser seu próprio dublê, um "outsider" em sua própria vida.
Era assombrado por um sentimento de ausência, cativado pela noção de jamais ter nascido, que encontrou numa palestra de Jung. Nos anos 30, uma série de doenças psicossomáticas o levou a fazer análise durante quase dois anos.
No entanto, Beckett era capaz de rir de seu próprio temperamento sombrio, como quando alguém, durante uma partida de críquete, observou que era "o tipo de dia que nos faz sentirmos felizes de estarmos vivos", ao que respondeu: "Acho que eu não diria tanto".
Esse era o lado positivo do desapego que o caracterizava, o resíduo de humor irlandês que fazia com que pudesse enxergar-se como personagem, intransigente, não mundano, uma Cassandra moderna avessa ao consolo.
As primeiras obras de sua ficção, repletas de alusões eruditas, foram transpostas de sua própria vida, aparentemente sem rumo. Beckett tropeçava sob o peso de sua própria erudição.
Depois de 1945, como Cronin mostra, Beckett avançou para além da autodescrição, chegando a uma impessoalidade modernista, criando identidades abstratas que "podiam ser reveladoras sem serem auto-reveladoras".
Homem Beckett
O próprio Beckett era representado por um substituto, o "homem Beckett", como Cronin o qualifica, mais uma voz do que um personagem totalmente descrito, do qual apresentou variações.
Seus personagens eram máscaras distantes de sua vida real, distantes de qualquer vida que conhecemos, mas mais próximos de sua experiência interior, especialmente dos sentimentos de esperança desolada, remorso amargo, necessidade insatisfeita e declínio inexorável.
Mesmo sua decisão de escrever em francês foi mais uma forma de autopunição, uma simplificação ousada, uma forma de escapar do estilo alusivo de Joyce e de distanciar-se de sua própria e rica base linguística inglesa. "É impossível deixar de escrever poesia quando se escreve em inglês", queixou-se.
Mas, à medida que sua genialidade vinha à tona, também se manifestava uma distância enorme entre os intermináveis monólogos na primeira pessoa de sua ficção e o diálogo antifonário enxuto de suas peças.
Mesmo em seus melhores momentos, a sobriedade e desolação de seus romances sempre serão difíceis de digerir. Mas os personagens de suas peças possuem uma vitalidade hipnótica e um humor contido, apesar de suas vidas reduzidas ao mínimo.
Os mendigos que nos apresenta descendem da comédia, até mesmo em seus silêncios. Essas duplas que discutem incessantemente reapresentam rituais de dependência e desconexão que, como mostram ambos os biógrafos, tinham raízes profundas na vida de Beckett, especialmente em seus relacionamentos com uma série de mulheres com as quais não conseguia conviver, mas tampouco conseguia viver sem, a começar por sua mãe censuradora e continuando com sua esposa, Suzanne.
Sua capacidade de escrever ficção sustentada o abandonou quando se esforçava para concluir "How It Is", em 1960, embora tenha algumas obras posteriores em prosa de beleza espantosa.
Suas peças acabaram se assemelhando cada vez mais aos monólogos desolados de sua ficção, com apenas uma voz, às vezes apenas um ator nem mesmo falando, mas apenas ouvindo uma voz incorpórea em fita ou em sua cabeça.
A imagem, que se desfaz lentamente, de Billie Whitelaw se balançando até morrer em "Rockaby" (1980), ao som do acompanhamento único de sua própria voz gravada, continua indelével.
Em "Not I" (1972), uma das mais assustadoras dessas peças posteriores, o orador é simplesmente uma boca que jorra uma enxurrada de memórias lancinantes nos ouvidos de um ouvinte silencioso e impotente.
Quando a incomparável Whitelaw primeiro representou essa peça, o diretor foi obrigado a prender sua cabeça numa só posição para impedir que se movesse -uma metáfora perfeita do mergulho na imobilidade descrito pelo próprio Beckett. "Oh, Billie, o que fiz a você?", disse Beckett quando ela desmaiou num ensaio, emocionalmente exaurida.
Samuel Beckett, o ser humano, parece ter sido a personificação da bondade, generosidade e lealdade inabalável, mas, enquanto escritor, se manteve fiel aos cantos mais sombrios de sua própria mente.
Seu humor negro era tão medieval quanto moderno. Hugh Kenner observou o contraste entre o Beckett irlandês e francês, entre o "gentil comediante" e o "solipsista mórbido".
Anthony Cronin procura nos apresentar um Beckett normal, mas ciente da estranheza essencial de sua personalidade.
A obra de Beckett foi tão enxuta, tão parcimoniosa, todo seu modo de vida, tão ascético, que é um choque vê-lo envolto num monte de detalhes biográficos.
Os detalhes de sua vida complementam o que escreveu, mas não chegam a explicá-lo. Apesar disso, formam uma leitura irresistível e perturbadora.

Livro: "Samuel Beckett - The Last Modernist"
Autor: Anthony Cronin
Lançamento: Harper Collins Publishers
Quanto: US$ 30 (645 págs.)

Tradução Clara Allain

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