São Paulo, sexta-feira, 15 de agosto de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Betinho e Galdino

LUIZ CAVERSAN

Rio de Janeiro - Tudo na morte é discutível, menos a própria.
O axioma acima é de autoria de Herbert de Souza, o Betinho. Encontra-se em seu último livro, "A Lista de Ailce" (Cia. das Letras), uma espécie de memorial no qual, a partir de uma lista de nomes que lhe é enviada pela prima Ailce, o sociólogo mineiro lembrava os vivos e sobretudo os mortos de sua cidade natal, Bocaiúva.
O livro é uma delícia, para ler numa só sentada.
Nele se pode ter contato com a maneira singela, pragmática, segura como o autor se relacionava com a idéia da morte, com a qual finalmente se encontrou no fim-de-semana passado.
A morte, para Betinho, era isso: o fim da vida, indiscutível tanto quanto inevitável.
Na última segunda, pôde-se ouvir isso de viva voz do homem que criou a mais importante campanha contra a miséria no país, na reprise do programa "Roda Viva", da TV Cultura.
Ao ouvi-lo falar do fim de tudo como se falasse do almoço de amanhã, era impossível evitar a sensação de pequenez, fragilidade, medo. Nós, que vamos morrer sabe-se lá quando, não suportamos a idéia do fim; muito menos que ele, que convivia diariamente com a morte por causa de sua doença. Para que sofrer, se há tantas coisas importantes para fazer?
E era isso que fazia Betinho grande, maior.
Lembro-me do Betinho por dois motivos: primeiro, porque ele é uma daquelas pessoas para quem nunca uma homenagem será demais. Segundo, por causa da maluquice que vem se tornando o julgamento dos assassinos do índio pataxó Galdino, queimado vivo para a diversão de um grupo de desocupados brasilienses.
A questão, como se sabe, é que a juíza do caso desqualificou o crime, atribuindo a ele uma suposta não-intenção de cometê-lo.
Como se isso fosse possível: ateia-se fogo em alguém não para queimá-lo, mas para se divertir.
Se o cara morreu, a culpa deve ter sido dele.
Como disse o Betinho, tudo na morte, inclusive na de Galdino, é discutível. Menos que ele morreu, queimado.
Também, quem manda ser índio...

Texto Anterior: Terra de ninguém
Próximo Texto: Danilo e Débora
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.