São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
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Os planos de saúde acabaram num pacote medíocre; Viva o calote; Esperteza; Um caso de bobagem pura e simples; Nelson Pretto; Tunga retórica; Baixo astral

ELIO GASPARI

Os planos de saúde acabaram num pacote medíocre
Deu confusão na Comissão Especial da Câmara que discute a regulamentação dos serviços de seguro e medicina privada. Seu relator, o deputado Pinheiro Landim, apresentou um projeto que o Ministério da Saúde quer ver queimado. O Planalto despachou uma brigada parlamentar para cozinhá-lo. Ameaça-se até com a possibilidade de edição de uma medida provisória.
O governo entende que o projeto de Landim protege as empresas, particularmente a dos planos de saúde que trabalham com médicos e hospitais credenciados. Isso é verdade, mas não tem tanta importância.
O que está acontecendo com a regulamentação do sistema de saúde privado é muito mais um retrato da inépcia do governo para lidar com o assunto, do despreparo do Congresso para discutir temas de real interesse da sociedade e da malandragem do empresariado do setor, mestre na arte de deixar os outros fazendo besteira para manter as coisas como estão. (E estão péssimas.)
O relatório e o voto do deputado Landim têm 11 páginas. Um cacho de banalidades, tais como "debate aberto", "árdua caminhada" e "imperiosa necessidade". Não têm uma só informação relacionada com o tema a respeito do qual pretende legislar. Ou melhor, tem uma e está incompleta: informa que há hoje no Brasil 41 milhões de pessoas cobertas pelo sistema de medicina privada.
Nesse número está um bom começo para se passear sobre a questão. A população coberta pode ser contada em 41 milhões, mas desse total, algo como 33 milhões de pessoas estão protegidas por planos coletivos das empresas onde trabalham. Perdendo o emprego ou aposentando-se, vão para o SUS ou para as mãos de Asmodeu.
Atrás desse detalhe está o coração da mamata da medicina privada. Ela fatura enquanto o cidadão tem menos de 60 anos. Uma beleza, sabendo-se que 50% dos gastos com a saúde se dão depois dos 65. Arrecadam durante 30 anos e ficam com 50% do risco. É a privatização da saúde dos sadios. Quando o sujeito envelhece e a despesa se compacta num período de 10 anos ou 15 anos, estatiza-se o doente.
Um dos melhores momentos da comissão deveu-se à sinceridade pefelê do deputado paulista Ayres da Cunha, dono da Blue Life: "Na minha empresa, há um problema chamado idoso. Se tirássemos todos os idosos do meu plano, minha rentabilidade aumentaria muito". Ayres da Cunha foi um dos deputados que defendeu com maior competência e clareza os seus interesses. Ele é agora secretário de Educação da Granja Celso Pitta.
O projeto de Landim, bem como um documento enviado pelo governo, esqueceram-se dos desempregados. Para se ter uma idéia do que isso significa, nos Estados Unidos a direita republicana patrocinou uma lei pela qual eles podem manter o seguro-saúde da empresa por 18 meses, desde que o paguem. Como esse tipo de seguro é mais barato que o individual, até um republicano é capaz de descobrir um jeito de preservar o nível de vida de um desempregado. Os tucanos reinam sobre quase 1,5 milhão de desocupados em São Paulo.
A regulamentação dos planos de saúde corre pelo Congresso há 16 anos. A esta altura já existem 14 projetos relacionados com o assunto e há quase um ano criou-se a comissão especial que tem Landim como relator, para unificá-los.
Apesar dele ter se queixado da "demorada peregrinação" que fez por Brasília, os trabalhos da comissão foram pífios. Com algo como 30 membros, menos de um terço deles trabalhou de verdade. Ouviram 13 pessoas capacitadas a discutir o assunto, mas se a metade prestou depoimentos relevantes, foi muito. Não houve de parte do Planalto nem um remoto interesse pela questão. Seu estado-maior parlamentar, muito mais preocupado com a saúde do Segundo Reinado, jamais foi convocado para entrar no assunto.
O governo conseguiu a proeza de andar para trás. Pouco depois de empossado, o ministro Adib Jatene começou a trabalhar num projeto obrigando as empresas privadas a ressarcir a Viúva quando os seus segurados são atendidos na rede pública. Jatene caiu e seu substituto, Carlos Albuquerque, esqueceu-se daquilo que seu antecessor havia escrito. Landim colocou o assunto no seu projeto, mas rebarbou a idéia de se criar um cadastro dos segurados. Sem ele, o SUS não pode identificar os casos em que está tratando de um doente segurado (o que é sua obrigação) e ao mesmo tempo engordando maganos que cobram pelo que não dão.
O pior aspecto do projeto de Landim, da mediocridade majoritária na comissão (ressalvados alguns abnegados, como o deputado Humberto Costa, do PT-PE) e do desinteresse do governo, é a falta de nível do debate. Os deputados e o próprio governo, adoram dar a impressão de que defendem os doentes indefesos da ganância das empresas. Inventam obrigações para o mercado, como se isso resolvesse alguma coisa. Empresário gosta de lucro, quem gosta de déficit é o Banco Central. Se o governo baixar uma legislação "felicitária", as empresas quebram, e logo que houver uma chance estão nas tetas do Estado. Quando isso acontecer, o sujeito que está no SUS vai pagar impostos para sustentar barões e garantir a saúde de quem resolveu saltar do sistema público.
Quando isso vai acontecer? Pode ser logo. O projeto de Landim cria um sistema de resseguros, capaz de garantir os contratos das vítimas de empresas quebradas (e as há). Vai ao ponto de dizer que esse resseguro se destina a "assegurar a manutenção da viabilidade econômico-financeira das operadoras". Pelo cheiro da brilhantina, a Viúva será chamada a botar dinheiro nesse fundo. (No Banco Nacional de Habitação havia uma coisa parecida e acabou fazendo a felicidade de quem achou o seu Proer na rua.)
Quem foi para o sistema privado de saúde, até porque o SUS funciona mal, deve botar na cabeça que não há hipótese de um empresário abrir sua biboca para lhe garantir uma medicina de primeiro nível, a preço de feira. As empresas privadas estão de olho no dinheiro público porque chegaram perto do limite de incorporação de novos clientes sadios. Prova disso é a propaganda enganosa que seus corretores praticam e elas toleram. Algumas fingem que são instituições de utilidade pública para fraudar o Fisco como camelôs.
Se há uma coisa boa no projeto de Landim é a abertura imediata do mercado brasileiro às companhias estrangeiras, mas se há algo que se possa fazer para cuidar direito da regulamentação da medicina privada, é esquecer o seu projeto e começar tudo de novo. Com o governo levando o caso a sério e, se possível, a oposição descobrindo que os cidadãos estão mais interessados nesse debate do que em passeatas para xingar FFHH.

Viva o calote
O deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) conseguiu do ministro Reinhold Stephanes a lista dos cem maiores devedores do INSS em São Paulo. Coisa feia. Somam um espeto de R$ 3,1 bilhão e revelam que, se o ministério funciona para tungar os aposentados, não funciona para cobrar dos caloteiros.
O maior devedor é uma empresa chamada Companhia Cotia Coch de Papéis, com R$ 308 milhões. Trata-se de obra de um empresário (Renor Lavratte) que golpeou a praça e sumiu. Não estava entre os cem grandes devedores nacionais em dezembro de 1996. Como é possível aparecer uma dívida desse tamanho de uma hora para outra, não se sabe.
A segunda colocada é a Vasp. Devia R$ 167 milhões e agora deve R$ 180 milhões.
Há nove meses, os dez maiores caloteiros de todo o país deviam R$ 1 bilhão. Agora, só os dez campeões paulistas devem mais que isso.

Esperteza
Fracassou a tentativa do professor Roberto Mangabeira Unger de publicar um livro no qual ele e o economista Gustavo Franco discutiriam suas posições políticas. Os dois chegaram a um acordo prévio durante um encontro, há meses, na Universidade de Harvard. Trocaram livros, mas depois Franco calou-se.
Não se sabe por que Franco aceitou a idéia. Meses antes de encontrar com Unger, já sugerira a FFHH, num famoso manifesto político-econômico que, na batalha retórica, não se deviam discutir propostas como as do professor e do ex-ministro Ciro Gomes.

Um caso de bobagem pura e simples
El Rey poderia passar uma lição de casa aos seus sábios da saúde: a leitura obrigatória do artigo intitulado "Doação Presumida e Transplante de Órgãos no Brasil", da pesquisadora Vera Schattan Coelho, na revista "Novos Estudos", do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap. Ela mostra a futilidade do esforço do governo quando se mete em pirotecnias como a transformação dos cidadãos em doadores, contrapondo-a ao desastre da política de tratamento dos doentes renais crônicos.
Coisa simples. Desde os anos 70, esse tipo de doente tem dois remédios, o transplante, como o de Sérgio Murilo (Cássio Gabus Mendes) na novela "A Indomada" (Rede Globo), ou a diálise.
É sabido que o transplante aumenta e melhora a qualidade da sobrevida, enquanto a diálise, obrigando o doente a filtrar sua corrente sanguínea duas vezes por semana, lhe dá uma existência menor e pior.
O governo gasta US$ 400 milhões por ano com doentes renais, mas deixa US$ 300 milhões na diálise. De cada cem doentes, só seis vão ao transplante. Outros 60, que poderiam ir, ficam na chuva.
Os recursos da saúde privilegiam a diálise (na mão da rede privada) por um erro de política pública. Não há como transferir dinheiro poupado na diálise para custear transplantes.
A pesquisadora sustenta, num tom sereno, sem usar a palavra, que o governo simplesmente faz besteira.
Para se ver o seu tamanho, com números que não saíram de seu estudo, basta verificar que o doente crônico faz diálise pelo resto da vida. Ele custa ao SUS R$ 12 mil por ano. Se o governo pagasse R$ 25 mil por transplante, quitaria o caso em dois anos. Como o SUS paga R$ 8.000, os médicos não fazem transplantes, abrem uma clínica de diálise e mansamente faturam à custa da burrice oficial.

Nelson Pretto
(42 anos, professor de introdução à informática na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia)
*
- O senhor acha que o programa do Ministério da Educação de colocar 100 mil computadores nas escolas públicas vai dar certo?
- Não sou profeta para saber. Posso lhe dizer que tenho dois medos. O primeiro é que essa chegada dos computadores atropele os professores. Já começou o treinamento dos treinadores. São cursos de dois meses. É muito pouco. O segundo é que esse projeto tenha mais a ver com números e festas. Depois da euforia, a nova tecnologia transforma a velha escola numa velha escola um pouco mais cara. Minhas dúvidas se relacionam muito mais com a concepção do que é o computador na escola do que com a colocação de mais uma máquina na sala de aula. Se você pergunta, é bom ou ruim? É bom, mas isso não quer dizer que vá dar certo.
- Onde o senhor acha que o processo está errado?
- Está errado porque está segmentado. Um pedaço do processo não fala com o outro. O ministro Paulo Renato Souza disse que a "TV Escola", que usa uma rede de emissoras de TV para treinar professores, não tem nada a ver com o projeto de informática. Ora, só tem. O Ministério da Educação não fala com o da Cultura, nenhum dos dois fala com o da Ciência e Tecnologia, que cuida da rede da Internet e nenhum dos três fala com o das Comunicações, que está travando o desenvolvimento da rede de escolas. Finalmente, ninguém fala com os garotos. É a garotada que vai impedir o furto dos computadores. É a garotada que vai lutar pela manutenção das máquinas. Nesta semana, em Salvador, eu vou assistir a uma aula na UFBA. Sabe quem serão os professores? Garotos de classe média e pobres que convivem com computadores. Eu até hoje não vi um projeto de interligação das escolas com a Internet.
- Como o programa está no começo e é possível corrigi-lo, o que o senhor propõe?
- Primeiro, que se interligue o que está desconectado. Segundo, que em vez de se pensar num programa que funciona como um trator, se veja primeiro quais são as experiências que estão dando certo. Terceiro, que se perceba a importância da Internet. Ela não é uma fase seguinte. Ela é um presente escancarado. Saiba de uma coisa: Mãe Estela me disse que seu candomblé de Salvador já está na Internet. Ela já se comunica, há tempo, por e-mail. Não é a Internet que deve entrar na escola, mas as escolas que devem entrar na rede. Esse negócio de ver a Internet como um negócio que te leva aos quadros do Louvre é irrelevante. O que ela vai fazer é levar Santo Amaro da Purificação para Estocolmo. Se eu tivesse que oferecer uma sugestão, diria apenas: vamos devagar, vamos perseguir a transformação, não a novidade.

Tunga retórica
O governo deveria expurgar da propaganda do plano "Brasil em Ação" aquilo que considera seu investimento no programa "Carta de Crédito". Esse programa permite que a classe média compre imóveis usados sem passar por intermediários.
Demorou para decolar e agora vai bem, obrigado. Se tudo der certo, a classe média vai tomar R$ 3 bilhões de empréstimos, dinheiro equivalente a quase 60% dos investimentos que o "Brasil em Ação" se orgulha no setor habitacional.
A iniciativa é boa, mas não compete ao governo gastar o dinheiro da Viúva fazendo publicidade de dinheiro que empresta aos cidadãos, cobrando-lhes juros competitivos.
O investimento da classe média na casa própria é um dinheiro suado, das famílias que vão pagar as prestações. O falecido Banco Nacional de Habitação foi à garra, entre outras razões, porque a ditadura transformava a poupança dos mutuários em motivo de glorificação do regime.
Talvez valesse a pena lembrar aos sábios do planejamento e da propaganda oficial que no biênio 97-98 as crianças com idade em torno de 14 anos poderão crescer a uma taxa média de 6% ao ano, mas isso não será uma realização do governo Fernando Henrique Cardoso.

Baixo astral
Estão péssimas as relações entre o ministro da Justiça, Iris Rezende, e o secretário de Direitos Humanos, José Gregori.
Ainda há espaço para que fiquem piores.

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