São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
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Sobre mitos e meias verdades

ROBERTO CAMPOS

"Pode-se dizer que uma nação consiste de seu território, de seu povo e de suas leis. O território é a única parte que tem uma certa durabilidade."
Abraham Lincoln (mensagem ao Congresso em 1.dez.1862)

O maior inimigo da verdade, dizia o presidente Kennedy, não é a mentira, bruta e identificável. É o mito, sinuoso e sedutor. A capacidade de fabricar mitos é talvez a única superioridade remanescente do socialismo sobre o capitalismo. Este produz resultados na cura da pobreza. Mas é pobre na fabricação de mitos.
Um dos mitos mais populares é o do "Estado Benfeitor", que corrigiria a falta de sensibilidade social do capitalismo selvagem. Isso é que está implícito na idéia de que, enquanto o setor privado se governa pela "lógica do lucro", o aparelho estatal busca "o bem comum". Criou-se o mito do "funcionário apostólico", contrastando com o "empresário egoísta". A realidade é naturalmente muito mais matizada. Há toda uma teoria econômica, a da "public choice", segundo a qual os funcionários se comportam como agentes num mercado político. Buscam vantagens, promoções e estabilidade, das quais se servem às vezes para tiranizar o público. São caçadores de renda (rentseekers). O famoso "bem comum" seria uma preocupação secundária.
De outro lado, o empresário, obcecado com o lucro, seria um benfeitor, desde que não tenha privilégios monopolísticos e seja exposto à concorrência. É que, para chegar ao lucro, tem que primeiro satisfazer o consumidor. E, para sobreviver à concorrência, não pode maltratar sua mão-de-obra, pois não conseguiria ser eficiente. Em suma, a idéia de que o funcionário é um apóstolo e o empresário um predador é simplesmente um mito.
Além dos mitos, há idéias deformadas. Exploremos algumas.
Uma idéia deformada é aquela que o engenheiro Jaime Rotstein chamou recentemente de "hipocrisia institucional". O mais frequente exemplo é o da confusão entre "legalidade e legitimidade", que está por debaixo da querela dos "direitos adquiridos" na discussão da reforma administrativa. Há coisas que são formalmente "legais", mas são "ilegítimas", por atentarem contra o requisito fundamental de proporcionalidade entre o esforço e a recompensa. Os supersalários dos marajás e muitas das "aposentadorias especiais", por exemplo, resultaram da aplicação especiosa de textos legais, em violação do bom senso, criando-se injustas desigualdades.
Adquirem respeitabilidade sob a rubrica geral de "direitos adquiridos". Mas no fundo são "abusos adquiridos", que têm de ser examinados sob a ótica da proporcionalidade e da "equidade para com terceiros". Levada a extremos, a tese dos "direitos adquiridos" inviabilizaria qualquer correção das deformações do serviço público.
Um outro mito tem a ver com as supostas "falhas do mercado", que justificariam intervenção direta do governo no setor produtivo. Em muitos países subdesenvolvidos, particularmente na África, costumava-se justificar o "Estado-empresário" com o argumento de que faltavam talentos gerenciais no setor privado. Trata-se de uma petição de princípio. O universo de recrutamento é o mesmo, não havendo razão para se acreditar que se possam pinçar burocratas eficientes num universo de incompetentes. A emenda sairia pior que o soneto.
É que os erros do empresário privado são minierros, puníveis pelo próprio mercado. Os erros do burocrata-empresário são macroerros, de repercussão mais ampla e correção mais difícil. Uma outra alegação é que só o governo, despreocupado com o lucro, pode planejar o longo prazo. Esse argumento é bastante mais plausível, mas desapontador na experiência prática. É que os governos dos países subdesenvolvidos geralmente são instáveis e consomem seu tempo em manobras de sobrevivência, enquanto os projetos sofrem de descontinuidade orçamentária. É a empresa privada que, para sobreviver, tem que planejar a médio e longo prazo.
O argumento da "falha do mercado" tem servido para justificar muitas bobagens, como, por exemplo, a criação de monopólios estatais na infra-estrutura de serviços. Como é sabido, nossa infra-estrutura de portos, ferrovias, telecomunicações e eletricidade foi originalmente criada por capitais privados, principalmente estrangeiros.
A partir da Segunda Guerra Mundial, houve, no Brasil e no mundo, maciça intervenção governamental, por encampações e desapropriações. As empresas estrangeiras tinham cessado de investir, provocando a deterioração de serviços. Era uma "falha de mercado" a ser corrigida, supostamente, pela "intervenção do Estado". O que foi esquecido era que a "falha do mercado" fora gerada pela "falha do Estado", ao qual coube a responsabilidade de fabricar a inflação de custos e represar tarifas. Isso está sendo hoje reconhecido. Completado um longo ciclo, o Estado falhou na sua tarefa de investir adequadamente na infra-estrutura. Volta-se a privatizar ferrovias, telecomunicações e eletricidade, sendo o setor privado chamado a corrigir "as falhas do Estado". É uma doce vingança para os liberais como eu, que nunca acreditavam nem nas "falhas do mercado" nem nas "benesses do Estado".
Lembro-me, a propósito, da grande controvérsia dos anos 50, no fim do segundo governo Vargas, sobre o desenvolvimento da eletricidade. Havia três grupos. O grupo do BNDE, do qual eu participava juntamente com Glycon de Paiva, era "privatista". Achávamos desnecessário criar a Eletrobrás ou encampar as empresas estrangeiras como a Light e a Bond & Share. O problema era apenas dar tarifas adequadas para que o capital privado não perdesse seu interesse em investir. O segundo grupo era o dos assessores do Catete, chefiados por Rômulo de Almeida. Para eles, o governo federal deveria assumir a principal responsabilidade pelos investimentos, criando a Eletrobrás. Eram os "federalistas". Havia um terceiro grupo, que desejava a intervenção governamental, mas sobretudo estadual. Eram os "estadualistas" mineiros da Cemig e das empresas estaduais paulistas.
Os "privatistas" foram derrotados, sendo os espólios da batalha divididos entre os "estadualistas" e os "federalistas". Hoje, com uma crise de energia em perspectiva e as finanças governamentais falidas, a privatização voltou a ser a palavra de ordem. Deseja-se a "presença do mercado" para corrigir as "falhas do Estado".
Na mesma época surgiu a controvérsia do petróleo, também com uma trindade de opiniões. Os privatistas apoiavam o "Estatuto do petróleo", que deixava o campo aberto à iniciativa privada, regulada por normas governamentais. Getúlio Vargas queria uma empresa estatal, mas não exigia o monopólio. Uma estranha aliança de pseudoliberais da UDN, militares nacionalistas e comunistas levou à criação do monopólio estatal. Era uma agressão à lógica, pois que o país, ao contrário do México, que tinha monopolizado petróleo existente, estaria monopolizando o risco e a despesa de encontrá-lo. Após quatro décadas de monopólio sem alcançarmos a auto-suficiência, voltamos a recorrer aos capitais privados, ainda que mantendo parcialmente a burrice inicial, porque a Petrossauro não será privatizada. Deixou apenas de ser um "símbolo do nacionalismo" para a posição mais modesta de "símbolo do corporativismo".
Cabe um último comentário sobre as deformações impostas por discípulos à obra dos mestres. Refiro-me a Lord Keynes, a cuja influência se atribui boa parte do intervencionismo governamental no pós-guerra, e a quem se credita, exageradamente aliás, o mérito de ter salvo o capitalismo de si mesmo...
Dizia-se em Cambridge que quando Lord Keynes se reunia com dois outros economistas haveria sempre quatro opiniões, pois o grande mestre teria sempre dois pontos de vista divergentes. Acusado certa vez de mudança de idéias, respondeu Keynes: "Mudei de opinião porque os fatos mudaram. Que faria você?".
Num de seus apotegmas mais memoráveis, frequentemente esquecido pelos defensores da intervenção estatal na economia, disse Keynes: "Não cabe ao governo fazer um pouco melhor ou um pouco pior o que outros podem fazer. Só deve fazer o que ninguém pode fazer".

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