São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
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O poder das frases

JANIO DE FREITAS

A onda da grande reformulação das polícias passou, como se esperava, sem deixar ao menos um vestígio de ação governamental, mas até, contrariando o usual, sem nos legar uma frase bisonha ou uma grosseria ginasiana. Melhor se saiu a outra onda dos mesmos dias, originada do conflito de interesses entre Pelé e João Havelange, que também não deu em nada, mas não traiu o padrão intelectual do poder.
À falta da habitual contribuição frasística do bisonho-mor, o senador Antonio Carlos Magalhães aproveitou a deixa de Havelange, sobre a imaginada recusa do Congresso a apoiar o projeto de Pelé: "Nem o presidente (Fernando Henrique) manda no Congresso, quanto mais o João Havelange".
Menos bem comportado do que seu "alter ego" -o Sérgio Motta temporariamente silenciado tanto por tática como por outra intervenção de embelezamento facial-, Fernando Henrique não se satisfez com o domínio já demonstrado sobre o Congresso, nem deixou passar uma semanazinha para desmentir o senador aliado. Além de determinar o teor que o Congresso deve dar à lei eleitoral, entrou sem mais cerimônias no outro Poder, o Legislativo que a Constituição supõe independente, porque deseja mudar o regimento da Câmara para dificultar ainda mais a oposição, como revelou na Folha o jornalista Kennedy Alencar.
A intromissão na Câmara é positiva: acaba com o inútil fingimento de que a Câmara não está reduzida à condição de cozinha legislativa da Presidência da República. Já o teor da lei eleitoral é caso mais sério, por consistir em dois golpes simultâneos.
O primeiro, configurado no atropelamento, pela apresentação repentina de um projeto feita por José Serra, do projeto que o deputado Carlos Apolinário vem conduzindo há meses, na tentativa de uma lei eleitoral minimamente respeitável. O segundo golpe é o teor mesmo do novo projeto, que desmoraliza de vez a idéia de eleição, a instituição chamada eleição, e submete o eleitorado ao papel de mero serviçal de ambições desatinadas, como se fosse um parlamentar do PSDB.
Em resumo, pelo projeto Serra tudo é permitido ao candidato Fernando Henrique, e os outros candidatos que se danem nas restrições intransponíveis. A um, a presença nos telejornais com as inaugurações-comícios; aos outros, o horário gratuito em tempo mais reduzido e mostrando só a cara do candidato, nada de comícios e nem mesmo de alguma produção de estúdio. Fernando Henrique já está em campanha, mas seus concorrentes só poderiam fazê-la nas quatro semanas antes da eleição. E por aí vai.
As atitudes políticas têm explicações políticas, mas não existem sem algo que lhes dê também explicações pessoais. Em artigo sobre Betinho, na Folha, o hoje senador José Serra, político de origem doutrinária como o seu retratado e companheiro de formação, escreveu este parágrafo: "Não era (o Betinho) orientado para o poder e não vivia o desafio permanente que inferniza os políticos de tradição doutrinária: trair ou perecer, isto é, abandonar os princípios para conquistar ou conservar o poder, ou perder a luta para não abandonar os princípios".
Aí está, trair os princípios ou perecer, a única alternativa do político na visão do bem-sucedido senador José Serra. Explica não só o seu projeto de nova lei eleitoral, como a si próprio; ao Fernando Henrique ministro, depois candidato e presidente-candidato; explica o PSDB rasteiro, explica a desfiguração do regime baseado numa Constituição e em três Poderes independentes.
A frase de Serra o seu correligionário Fernando Henrique não desmentiu. Não poderia.

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