São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
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Em algum lugar do passado

ADRIANA VIEIRA, IZABELA MOI E MARIANA SGARIONI

Cientistas desvendam como se formam as lembranças e procuram a cura para doenças que apagam a memória

É preciso começar a perder a memória, ainda que se trate de fragmentos desta, para percerber que é esta memória que faz toda a nossa vida. Uma vida sem memória não seria vida (...). Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso sentimento. Sem ela, somos nada.
(Luis Buñuel, 1900-1983, cineasta, em "Meu último suspiro", cuja mãe morreu com amnésia)

Na última terça-feira, o ator Fernando Alves Pinto, 28, o protagonista do filme "Terra Estrangeira", "comemorou" o aniversário de um ano do seu acidente. Era uma segunda-feira chuvosa e o carro de Fernando teve de ficar na garagem por causa do rodízio. Sem alternativa melhor, ele pegou a bicicleta para ir à aula de clarinete.
Na rua Maestro Cardim, no Paraíso, Fernando não percebeu um buraco cheio de água, enfiou a roda dianteira da bicicleta ali e, na tentativa de proteger o clarinete, caiu de cabeça no asfalto.
Um tombo tolo, mas que resultou em coma e duas cirurgias para retirar coágulos do cérebro. Quando acordou, Fernando parecia estar em cena: "Onde estou? Quem sou eu?". Não reconhecia amigos, parentes e esqueceu todo o texto de "Hamlet" que havia decorado.
Até hoje, Fernando não lembra dos 20 dias que passou internado e guarda, com angústia, a sensação de ter perdido a memória. "Era como se eu estivesse numa bicicleta e, de repente, tivesse passado um foguete. Entrei nele e fui para Urano. Voltei de lá a pé e sem um mapa", define o ator.
O tormento de Fernando, e de todos que sofreram amnésia, mostra a importância fundamental da memória -mais um campo da psicanálise que está sendo "invadido" e desvendado por cientistas com suas novas tecnologias.
"Nós somos quem somos porque lembramos de quem somos. Eu sou quem sou e não sou você porque tenho a minha história pessoal, que não é igual à sua. Eu sou a minha memória. Doenças como o mal de Alzheimer são tão tristes por isso, porque a pessoa perde a noção de quem é", diz o neurocientista Ivan Izquierdo, do Centro de Memória da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
As pesquisas de Izquierdo estão identificando as reações bioquímicas entre os neurônios que ocorrem durante a formação da memória no cérebro. Entendendo quais substâncias estão envolvidas nesse processo será possível descobrir remédios para Alzheimer, encefalites, síndrome de Korsakoff, amnésias etc. Aliás, avisa Izquierdo e todos os neurologistas ouvidos pela Revista: esqueçam as plantas milagrosas e outras drogas do gênero, porque não existe nenhum remédio capaz de melhorar a memória.
Em que ano nós estamos?
Embora não tão divulgadas quanto as descobertas genéticas, os achados neurológicos chegaram, nos últimos anos, a minúcias impressionantes. Sabe-se, por exemplo, que à medida que você, leitor ou leitora, passa os olhos por essas linhas, a parte esquerda do seu cérebro ativa lentamente algumas células, retendendo informações sobre a forma gráfica e sonora das palavras. Dali, partem mensagens químicas, que acionam imediatamente outras células, na parte dianteira do cérebro, interpretando os sentidos do que está sendo lido. Cada vez que o significado foi entendido, há uma ordem para que seus olhos saltem à frase seguinte.
Quanto tempo demora esse processo? Milésimos de segundos para a comunicação entre os neurônios; décimos de segundos para extrair as informações e passar à palavra seguinte; segundos para entender todo um parágrafo. Durante alguns dias, as informações estarão armazenadas em três regiões do cérebro (veja desenho na pág. x) e será fácil lembrar-se do texto. Depois de cerca de 2,5 anos, você precisará de um esforço adicional para comentar com um amigo sobre esse número da Revista da Folha, porque os dados estarão apenas em duas áreas (córtex entorrinal e parietal). No ano 2002, a nossa reportagem estará gravada apenas em uma região e você só irá comentá-la se o texto o tiver impressionado muito -o que esperamos que aconteça.
Agora, imagine se você fosse incapaz de lembrar qualquer coisa que leu logo depois de fechar este exemplar. É isso que acontece com quem sofre perda da memória recente. Na literatura científica, é famoso o caso do canadense H.M., que em 1953 teve parte dos seus dois lobos temporais retirados como tentativa de acabar com suas crises de epilepsia. Suas lembranças antigas foram preservadas, mas ele não conseguia reter novas informações. A psicóloga que o acompanhava tinha de se apresentar toda vez que o atendia. Não conseguia também assimilar a morte de um tio. Cada vez que perguntava pelo parente e recebia a notícia da sua morte, emocionava-se e chorava. Era sempre uma (triste) novidade para ele.
Com uma atrofia dos dois hipocampos, resultado provavelmente da combinação de diabetes e hipertensão, o eletricista E.C., 84, sofre o mesmo tormento que o "famoso" canadense. Durante uma entrevista de meia hora, ele perguntou três vezes quem era a repórter. "Os distúrbios começaram há cerca de cinco anos. Ele não lembrava se havia almoçado ou jantado. Hoje, não consegue guardar onde é o banheiro ou o quarto. Colocamos na porta de cada cômodo um papel identificando o lugar. Certa noite, ele se levantou para ir ao banheiro e depois ficou sentado na sala porque não sabia qual era o seu quarto", conta uma das filhas de E.C.
As lembranças mais antigas, porém, estão preservadas. Ele se lembra do casamento, do trabalho, do nascimento dos 11 filhos e mantém o raciocínio razoavelmente rápido.
E.C. - Minha memória tem falhado, sabe. Eu já tenho idade, nasci em 4 de fevereiro de 1913.
Revista - Então, quantos anos o sr. tem?
E.C. - Em que ano nós estamos mesmo?
Revista - Em 1997.
E.C. - 97 menos 13 é 84. Portanto, tenho 84 anos.
Além de ter mantido suas memórias remotas, E.C. teve preservada sua "memória de procedimento". Seu médico, o neurologista Paulo Bertolucci, da Universidade Federal de São Paulo, ensinou E.C. a montar um pequeno motor. Dias depois, o eletricista havia esquecido as lições, mas conseguiu refazer a peça em um tempo menor, sinal de que a sua capacidade de aprender habilidades está preservada. Dirigir, nadar e até caminhar são algumas atividades que envolvem a memória de procedimento, que é processada nas regiões mais profundas do cérebro (núcleo da base e no cerebelo) -daí dizermos que, uma vez aprendido, nunca se esquece como andar de bicicleta.
"Os leigos não costumam considerar a memória de procedimento porque pensam sempre na memória declarativa, que é a do tipo 'Eu me lembro de..."', explica o neurologista Ricardo Nitrini, do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Estou indo ou voltando?
Outra descoberta recente dos pesquisadores relaciona emoção e memória, uma combinação já muito explorada pela psicologia. Segundo Izquierdo, sabe-se hoje que pelo menos três vias nervosas (a dopaminérgica, a noradrenérgica e a serotoninérgica), que estão vinculadas às emoções, estado de ânimo e afeto, atuam nas três regiões do cérebro onde a memória é formada. Pode ser a explicação orgânica para algo muito discutido por Sigmund Freud: sempre que lembramos de um acontecimento, não conseguimos fazer uma reconstituição exata do que houve. Nossas recordações chegam carregadas de saudades, ressentimentos, alegrias.
O problema de memória de Ivete da Cunha Gõpfert é um exemplo dessa interação. Certa vez, parada no ponto de ônibus que tomava diariamente, Ivete começou a se perguntar: "Estou indo para o centro ou voltando para casa?". Não era a primeira vez que um "branco" desses acontecia. Ela andava esquecendo a porta de casa aberta, comprava duas vezes o mesmo par de sapatos e já não conseguia decorar a senha do seu cartão do banco.
Isso aconteceu há três anos. Ivete tinha 64 anos, mas seu caso não era de esclerose, nem de lesão cerebral. Recém-separada, depois de um casamento de mais de 30 anos, e recém-aposentada, depois de 32 anos como enfermeira, Ivete começou a perder interesse pela vida. Sua capacidade de concentração foi diminuindo, e o seu cérebro não conseguia reter as informações. O diagnóstico final: depressão.
Tratada na Oficina da Memória da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Ivete recuperou-se e hoje estuda literatura brasileira, italiano e espanhol (leia depoimento na pág.x).
"Na depressão, a principal via nervosa afetada é a serotoninérgica, onde circula a serotonina, neurotransmissor ligado ao estado de ânimo. Se há uma falha ou hiperatividade dessa via, a formação de memória acaba sendo prejudicada", explica Izquierdo.
Não sou débil
Se houve muitos avanços na compreensão fisiológica do cérebro, os tratamentos para amnésias e outros problemas de memória ainda são escassos. Os casos mais graves são os que afetam o lobo temporal. Se a região é lesionada, como no mal de Alzheimer e nas encefalites graves, os quadros são irreversíveis.
Já nos acidentes com traumatismo craniano, a pessoa normalmente consegue recuperar sua memória remota e a capacidade de reter novas informações. "Mas ocorre uma amnésia lacunar, que compreende alguns dias antes do acidente e outros após. Dificilmente, a pessoa se lembra do tempo que passou no hospital. Essas lembranças nunca serão resgatadas", diz Nitrini.
Foi o que aconteceu com o ator e cantor Flávio Silvino, 25, conhecido por interpretar o personagem Matosão na novela "Vamp" (Rede Globo). Em novembro de 1993, o automóvel que dirigia bateu de frente com um carro-forte.
Com movimentos e fala lentos, Flávio diz: "Minha memória agora está muito confortável. Só me lembro das coisas que me interessam". Ele não se lembra da sua carreira de cantor, apenas da gravação do seu disco no estúdio e da equipe que trabalhou com ele. Esqueceu o acidente, mas não perde os compromissos do dia-a-dia. "Isso não depende de memória, mas de responsabilidade", diz, irônico.
Com sessões diárias de fonoaudiologia e fisioterapia, Flávio se ressente do jeito que é visto pelos outros. "Estão sempre me pintando como bobo ou débil", diz.
O horror singular e sinistro de perder a memória -o que nos aproximaria, segundo a ficção científica, dos andróides- é descrito pelo neurologista Oliver Sacks, na narração do caso do "Marinheiro Perdido" (em "O homem que confundiu sua mulher com um chapéu"). "Jimmie estava, por assim dizer, isolado em um único momento da existência, com um fosso ou lacuna de esquecimento em toda a sua volta. Era um homem sem passado (ou futuro), preso em um momento que não tem sentido e muda constantemente", escreve Sacks.
Jimmie havia esquecido seus últimos 20 anos de vida e tinha perdido a memória recente. Achava que ainda tinha 30 anos. Irritado, Sacks mostrou-lhe um espelho e perguntou: "Veja se isto é um rosto de um rapaz de 30 anos?". O marinheiro entrou em pânico, e Sacks arrependeu-se do que fez. Mas graças à doença, alguns minutos depois, Jimmie já havia esquecido do espelho e achava que era jovem de novo.
Quem é você?
Mesmo sem grandes acidentes ou doenças terríveis, as pessoas podem ser acometidas por amnésias passageiras, chamadas pelos médicos de "amnésia global transitória". As causas podem ser enxaquecas, lesões na cabeça, insuficiência de fluxo sanguíneo no cérebro ou estresse físico e mental.
Durante minutos, horas ou até dias, a pessoa esquece quem é e onde está. Nitrini conta de um paciente seu que estava consertando o telhado e, de repente, esqueceu por que estava ali. Não reconhecia a família, mas no dia seguinte voltou ao normal.
A recuperação nessas singulares amnésias é imediata e completa. Mesmo assim, os "pequenos ataques" são pavorosos, principalmente para quem está ao lado: o paciente nem se dá conta da sua amnésia.
No último dia 5, médicos ingleses publicaram um estudo no "Journal of Neurology, Neurosurgery and Psychiatry" sobre um tipo particular de amnésia global transitória, que aparece na relação sexual. Durante a transa, a pessoa se pergunta "onde estou?", "quem é você?", mas não pára. O desempenho sexual, como andar de bicicleta, está na "memória de procedimento". Quando a memória volta, ele (ou ela) esquece toda a relação sexual e guarda apenas "uma vaga lembrança das preliminares". É a explicação científica que todo machão ou toda garota de boa família ("perdi a cabeça") esperava.

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