São Paulo, terça-feira, 26 de agosto de 1997
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Orquestra típica

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Sou de um tempo em que os guris aprendiam na igreja a renunciar ao diabo, ao mundo e à carne e nos estádios a detestar a seleção argentina. Em linhas gerais, o país odiava aqueles gringos de camisa azul e branca, calção preto, pernas branquelas, que representavam nosso maior e talvez único inimigo visível no planeta.
Perdíamos as copas Roca na escalação. Como resistir aos Masantonios, Sastres, Pederneras, Peuceles, Dela Matas? Fomos terceiros do mundo na Copa da França e os últimos da face da Terra quando, logo depois, a Argentina nos enfiou acachapantes 5 a 0.
Em São Januário, numa rixa memorável, 0 a 0 no placar, o juiz marca pênalti contra a Argentina. Em sinal de protesto, os argentinos (que os locutores de rádio chamavam de portenhos) saíram de campo. A penalidade seria cobrada para o gol vazio. E aí foi o drama: ninguém queria bater o pênalti. As canelas nacionais tremiam diante da possibilidade de a bola não entrar no arco abandonado. O pavor era tanto que ergueu na linha de gol a muralha invisível de nossa inferioridade cívico-esportiva.
Nunca fiz muita fé nessa recente camaradagem neoliberal entre brasileiros e argentinos. Descontando rivalidades e ressentimentos do futebol, sempre nos olhamos com um pé atrás. Vendíamos café, açúcar e banana para lá. E lá comprávamos trigo e pão. Numa dessas copas Roca, os alunos do Pedro 2º -que representavam a vanguarda de nossos protestos morais e políticos- recusaram-se a comer pão para não consumir o trigo que enriquecia a Argentina.
Bem, estamos agora com uma rusga menor, que nem sequer pode ser comparada ao clima de guerra dos estádios antigos. Somos irmãos dentro e fora do campo, sócios no Mercosul, Menem e FHC se adoram e se abraçam sorrindo. Mesmo assim, devemos seguir o lema de Floriano Peixoto: confiar desconfiando. Temos a certeza de que eles fazem o mesmo.

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