São Paulo, terça-feira, 2 de setembro de 1997
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O sertão, a princesa e a ereção das teleobjetivas

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

No sertão só tem silêncio. Pelo menos bem lá dentro, serra dos Cariris Novos, fronteira do Piauí com Ceará. Em recantos onde, como nos primeiros tempos, mal se fala. Para quem ainda precisa sobretudo comer, falar é desnecessário.
Se as únicas necessidades que tivéssemos experimentado na vida tivessem sido as físicas, muito provavelmente nunca teríamos conseguido falar, diz Rousseau. Expressaríamos nossos pensamentos pela linguagem dos gestos apenas.
Por isso, no sertão mal se fala -como os personagens do exemplar "Vidas Secas", de Graciliano Ramos. A origem da linguagem, para Rousseau, está nas nossas necessidades sentimentais. Para ele, não foram nem a fome nem a sede, mas sim o amor, o ódio e a raiva que arrancaram dos humanos as primeiras palavras.
"A fruta não desaparece de nossas mãos. (...) Caçamos em silêncio a presa do nosso banquete. Mas para comover um jovem coração ou repelir um agressor injusto, a natureza dita acentos, gritos, lamentos. Nisso repousa a invenção das mais antigas palavras; e por isso as primeiras línguas eram cantáveis (...) antes de se tornarem simples e metódicas."
O sertão continua em silêncio, extensões inteiras desabitadas, os sertanejos espalhados pelo país como as primeiras espécies humanas se espalharam pela Terra e popularam-na -o efeito natural das necessidades primárias foi o de separar os homens e não o de reuni-los.
Na caatinga esturricada da serra, o carro perseguiu a trilha dura, de terra, pó e pedra. O rádio não sintonizou uma única estação. Nenhum satélite rompeu o silêncio, nem televisores, telefones, celulares, bips ou secretárias eletrônicas. Nenhuma das tecnologias da ansiedade atinge o Sítio das Onças, que ainda vive à meia luz das candeias de querosene.
*
Deixar o silêncio do Sítio das Onças, o calor parado na atmosfera abafada da serra dos Cariris Novos diretamente para o estardalhaço da notícia, para as trombadas da imprensa, para o ferro retorcido de um carro contra o concreto de Paris, é surreal.
Estava morta a ex-princesa Diana, objeto de elaborada metamorfose da mídia, da transformação feminina não pelo casamento, mas pelo divórcio, na observação da americana Naomi Woolf.
Estava morta a empresária cujo produto era sua própria personalidade. O ícone que passou de Cinderela da imaginação pré-feminista (cuja vida dependia do beijo de um príncipe) para vingadora fria e poderosa, empresária "com força suficiente para derrotar um dos conglomerados mais ricos e influentes da Europa, a Família Real britânica".
Mas morreu imprensada pela brutalidade do conglomerado da mídia, pela sofisticada zoada das comunicações, invadida pela ereção das teleobjetivas -só havia homens na cena de sua morte, falos caçando o objeto de desejo e fascínio.
Tamanha demência de paixões para satisfazer o tédio profundo das sociedades enfastiadas. A barbárie -que certamente não está nem no silêncio, nem no sertão.

E-mail mfelinto@uol.com.br

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