São Paulo, quinta-feira, 4 de setembro de 1997
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Charbonneau

OTAVIO FRIAS FILHO

Agora que a Igreja Católica renova, se isso não fosse um paradoxo, a sua incrível fossilização em matéria de moral e costumes, é oportuno lembrar do brilhante período anterior, quando ela se abriu para o mundo como poucas vezes fizera antes, deixando-se permear pelo experimentalismo que marcou os anos 60.
O período de João 23 (1958-1963), talvez o mais "cristão" dos papas, inaugurou a reformulação que seria aprofundada sistematicamente por Paulo 6º (1963-1978). Para a área popular a doutrina passou a ser a das reformas sociais no capitalismo; para a classe média, a substituição da moralidade das aparências por uma de intenções.
Ou seja, exatamente o contrário da política do papa que volta a nos dar a honra de sua presença em outubro. Numa coincidência involuntária, o Colégio Santa Cruz está por lançar a biografia do padre Charbonneau, a propósito do décimo aniversário de sua morte. Ele foi o maior polemista católico, entre nós, no período de Paulo 6º.
Junto com a introdução do livro de Alberto Martins, antecipada pelo Mais! de domingo, vemos uma foto do biografado, ainda jovem, disputando um cabo-de-guerra. Vestindo camiseta, a corda enrolada em seu tórax de atleta, o rosto quase obsceno de tanto entusiasmo, o padre grita em atitude de deboche contra o time adversário.
Charbonneau veio de Montreal, no Canadá francês, para São Paulo em 1959, a fim de lecionar filosofia no Santa Cruz, uma escola da elite local. Logo provocou escândalo: ele era não apenas o clérigo sem batina, simpatizante de idéias subversivas, mas o padre que bebia, fumava e gostava especialmente -essa era a intriga- de fiéis do sexo oposto.
Essa imagem era devida à vitalidade dos apetites de Charbonneau, em correspondência com a sua concepção de que religião e vida deveriam confundir-se a ponto de se converter numa coisa só. Ele escrevia e falava muito, sempre escolhendo os assuntos polêmicos, os enfoques explosivos, as crises, enfim, da certeza.
Os temas que o celebrizaram foram tipicamente "sessenta": a virgindade, a pílula, o divórcio. Embora tenha escrito a favor da reforma agrária e tenha sido antipático quanto ao regime militar, sua militância (em livro, na imprensa, na televisão) foi mais importante no sentido de estabelecer uma moral menos hipócrita, mais sensível.
Nos demais colégios "tradicionais", o objetivo era moldar o aluno por fora: o que ele pensava ou sentia não era assunto pedagógico. No Santa Cruz era o contrário. O aluno era intoxicado de Dostoiévski, Kafka e Camus, para só então ser içado do desespero por um solidarismo cristão inspirado em Maritain e Teilhard de Chardin.
O processo marcou muitos desses futuros burgueses na forma de uma certa ventilação de idéias, de uma inclinação humanista, de uma sensibilidade cultural -o que é um feito no cenário mesquinho das "nossas elites". Charbonneau perdeu o cabo-de-guerra, mas não é figura de linguagem dizer que suas idéias estão vivas nessas pessoas.

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