São Paulo, quinta-feira, 4 de setembro de 1997
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Dissecando o surto de sarampo

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

Não esperávamos conviver, no final do século, com o retorno do sarampo como problema de saúde pública
VICENTE AMATO NETO e
JACYR PASTERNAK
Em virtude da disponibilidade de vacina preventiva muito eficiente, o sarampo, doença infecciosa facilmente transmissível e, portanto, disseminável, havia deixado de representar percalço no contexto da saúde pública em São Paulo, modificando situação antes vigente, quando adoecimentos e suas consequências, inclusive fatais, eram comuns.
De repente, a partir do segundo semestre de 1996, a enfermidade voltou com grande ímpeto. Impõe-se, então, analisar sensatamente o acontecido, para encontrar causas, evitar contratempos ou más especulações e delinear corretas medidas preventivas.
Pareceu-nos judicioso e oportuno consignar alguns tópicos sobre o assunto, a fim de não perder a oportunidade para emitir opiniões e de permitir à comunidade melhor compreensão do que vem sucedendo. Eles estão relacionados a seguir.
1) Tudo deve ter começado com o insuficiente número de crianças vacinadas em 1995 e 1996. Talvez tenha havido indisponibilidade de recursos materiais; é provável também que efeitos adversos de imunizações, ocorridos com maior frequência ultimamente em virtude do emprego de preparações de má qualidade, tenham influído no sentido de afastar interessados dos núcleos nos quais são aplicados os agentes preventivos.
2) Em proporção dificilmente mensurável, é viável que as contra-indicações, sem respaldo científico, que homeopatas e outros adeptos de práticas médicas ditas alternativas defendem tenham prejudicado programações oficiais. Esses médicos acreditam que a defesa contra infecções deve surgir espontaneamente, desprezando os distúrbios ligados aos adoecimentos, às complicações, às sequelas e até a óbitos.
Curiosamente, essa objeção não faz parte dos tratados que regem a homeopatia, e o próprio criador dela não se opunha à vacinação antivariólica.
No Brasil, felizmente, se não estivermos enganados, seitas religiosas não atrapalham, como visto em determinados países.
Agora, considerar que a efetividade da vacina possa ter arrefecido depois de pouco mais de 20 anos de emprego tornou-se assunto reiteradamente abordado. Contudo, como admitir que isso tenha começado a ser percebido em São Paulo se o imunizante é utilizado mundialmente? É hipótese, então, não defensável com singeleza.
Como decorrência de não terem sido acometidas e de não terem sido vacinadas, há enorme quantidade de pessoas suscetíveis com idades entre 20 e 35 anos, com variações nesses extremos. A vacina não era empregada, e adoecimentos, no passado, afiguravam-se rotineiros.
Daí a origem desse contingente, necessariamente incluível nas providências profiláticas, sendo inadequado apelar para a falta de recursos com o intuito de desconsiderá-lo. Assistência médica e diferentes percalços custarão muito mais.
3) Conduta coibidora estipulada em São Paulo prevê ampla administração da vacina a crianças, em três doses, aos seis, nove e 15 meses de idade, com abrangência até os cinco anos, além de bloqueios relacionados com áreas nas quais adultos foram atingidos.
A proposição de três doses é inédita, e revacinar vacinados, de acordo com outro contingente pretendido, constitui atitude original e atesta má confiança sistemática no imunizante.
Por seu turno, não incluir globalmente os adultos que citamos prolongará, sem dúvida, a duração do surto, manterá o vírus circulando independentemente das providências referentes às crianças e não imunizará mulheres que engravidarão. Essas mulheres, assim, deixarão seus filhos sem anticorpos específicos nos primeiros meses de vida.
A intenção de vacinar profissionais da área da saúde é adequada, porquanto ao lado de múltiplos tipos de infecções, hospitalares ou ambulatoriais, delineia-se presentemente mais um, hoje representado, de maneira esdrúxula, pelo velho sarampo. As pessoas mencionadas, expostas, podem contrair a virose ou difundi-la nesses ambientes, gerando contratempos justamente em lugares que não deveriam estar vulneráveis.
Duas especulações apareceram: com o declínio da doença, o vírus responsável saiu muito de foco e, dessa forma, deixou de constituir reforço para a imunidade, como "booster", nos moldes do que acontece em diversas infecções; ou existiria outro tipo de vírus causador do sarampo, motivador do recrudescimento em vigor. Citamos esses fatos só para retratar feições do panorama no momento instalado, recomendando cautela diante de evento que apenas a correta avaliação científica esclarecerá.
Por fim, como infectologistas veteranos, confessamos que não esperávamos conviver, no final do século, com o retorno do sarampo como problema no âmbito da saúde pública. Entre outras missões, voltaremos a ensinar acadêmicos de medicina e médicos recentemente graduados a diagnosticar essa doença, repetindo o que ela significa em termos sociais, assistenciais e econômicos.

Vicente Amato Neto, 70, infectologista, é professor-titular do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

Jacyr Pasternak, 57, infectologista, é médico-assistente da Divisão de Clínica e Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas da USP.

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