São Paulo, sábado, 6 de setembro de 1997
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Em favor da vida e da dignidade

SANDRA STARLING

É preciso esclarecer, antes de mais nada, que a discussão que se faz hoje no Congresso Nacional não diz respeito a liberalizar ou obrigar quem quer que seja a abortar.
O que a Câmara dos Deputados está apreciando é uma proposição que procura regular e resguardar o direito de assistência médica imediata à mulher -especialmente a de baixa renda, que não tem acesso a hospitais particulares- naquelas situações em que o Código Penal (art. 128) reconhece a licitude da interrupção da gravidez, a saber: se não há outro meio de salvar a vida da gestante; se a gravidez resulta de estupro e a operação é precedida de consentimento da gestante ou de seu representante legal.
O projeto, portanto, quer tão-somente assegurar o exercício de um direito previsto há mais de meio século. Diga-se de passagem que a iniciativa é tímida, se considerarmos que juízes já autorizam o chamado aborto eugenésico, ou seja, nos casos em que há má-formação do feto.
A própria legislação penal, mesmo na hipótese de manutenção do aborto como tipo penal, necessitaria de ajustes nas chamadas excludentes de antijuridicidade (aborto lícito). Bem lembra, por exemplo, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, que o Código Penal não contempla a questão da gravidez resultante de inseminação artificial sem a aquiescência da mulher.
Apesar de a lei autorizar a interrupção da gravidez nas hipóteses mencionadas há quase 57 anos, até hoje não se disciplinou um procedimento uniforme e eficaz em relação a essa matéria de forma a orientar hospitais e clínicas, especialmente os de natureza pública -o que é imprescindível, já que em ambos os casos o artigo 128 do Código Penal exige que a intervenção seja feita por médico.
Não obstante os números da mortalidade materna no Brasil sejam revoltantes, as normas de funcionamento do SUS (Sistema Único de Saúde) não tratam de questão tão relevante.
Estranhamos a posição dos que rejeitam o projeto, sob o argumento de que se pretende negar um direito do nascituro. Sabemos hoje, a partir do experimento com a ovelha Dolly, que, tecnicamente, é possível a formação de um embrião humano sem a fecundação de um óvulo por um espermatozóide.
Essa possibilidade científica de clonagem de um ser humano (contra o que nos posicionamos) revoluciona o debate moral, filosófico e religioso sobre a origem da vida. Abstraindo isso, seria um absurdo condenar à morte uma gestante, em risco de vida, em nome de uma expectativa. Compelir ao martírio a mulher nessa condição é algo abominável e que atenta contra o mais básico sentimento de respeito ao ser humano.
Por outro lado, exigir-lhe o sacrifício hediondo de suportar uma gravidez resultante de estupro é mais que insensatez, é dupla indignidade.
Para a mulher, a gestação significaria manter aberta a ferida da ofensa à sua incolumidade pessoal. Para o rebento, ultrapassada a desventura do recolhimento em alguma instituição de menores abandonados -como se essas existissem em número e qualidade bastantes para solucionar o problema da infância marginalizada em nosso país-, a vida seria marcada pelo selo de uma geração violenta e pela dor dilacerante e perpétua de não ter sido fruto do amor sincero entre um homem e uma mulher.

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