São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Uma aventura artistica comum

ROBERTO SCHWARZ

Continuação da pág. 5-12

Significativa em si mesma, essa recombinação de fatores tem um tom próprio, que no conjunto funciona vigorosamente, embora destoando da "prosa bem feita". Seja como for, a amplitude e o mapeamento da matéria, o ânimo sistematizador e pioneiro, que conferem ao livro o peso especial, têm a ver com a vizinhança do trabalho científico, e também do trabalho em equipe: na página final, dos agradecimentos, o autor dá crédito a dois companheiros pela pesquisa histórica e de linguagem, à maneira do cinema. São energias artísticas novas, que não cabem na noção acomodada de imaginação criadora que a maioria de nossos escritores cultiva.
O entrevistador e o pesquisador ajudaram o artista em sua esquematização, à qual imprimiram desigualdades literárias que são outros tantos sinais do tempo e apoios construtivos. Assim, o trabalhador, o malandro, o bicho-solto, o cocota, os rapazes do conceito e a polícia não se definem para sempre, cada qual por si: são elementos, em parte antigos, de uma estrutura em formação, a pesquisar e adivinhar. É dentro dela que as categorias se distinguem e relacionam de maneira precisa, além de mudável, que assegura a pertinência fina à ficcionalização. A matéria bruta dos depoimentos cria complexidade quase que no ato: há o menino que prefere ouvir a conversa dos bandidos a rezar com o pai na Assembléia de Deus. Há o bicho-solto que por amor de uma preta bonita sonha com a vida de otário. Outro declara que "virar otário na construção civil, jamais". Esse mesmo, pouco depois, vira crente e arranja emprego na Sérgio Dourado: a fé passava a afastar "o sentimento de revolta diante da segregação que sofria por ser negro, desdentado e semianalfabeto". O mundo relacional armado pelo jogo das posições fica na intersecção da lógica do cotidiano, da literatura de imaginação e do esforço organizado de autoconhecimento da sociedade.
Ainda nessa linha de arte compósita, vejam-se os momentos em que a prosa recapitula o passado ou explora o presente, no intervalo entre as ações. O gesto explicativo deve-se ao padrão da narrativa naturalista. A indicação descarnada é um subproduto da pesquisa de campo e tem a ver com a idéia de eficiência do relatório científico. A nota sensacionalista dos noticiários de jornal, usados como documentação fatual e matéria-prima ideológica, também entra para a escrita, que assimila ainda, além da determinação desesperada dos bandidos, a brutalidade entre administrativa e obtusa da terminologia policial. Com sua carga de degradação e alienação, a mescla é muito consistente e faz parte real, como se sabe, do universo de suas vítimas, que a despeito do abandono há muito tempo vivem em território trabalhado, para não dizer melhorado, pelo progresso. Basta pensar no "Lazer" pelo qual os bandidos passam na ida e na volta de suas saídas e que certamente foi a contribuição de um urbanista. Observe-se por outro lado que a gravitação ininterrupta do tráfico das drogas desloca todo um complexo de explicações, outrora científicas e agora bem-pensantes, centradas no alcoolismo do pai, na prostituição da mãe, na desagregação da família etc. Nas circunstâncias, esses raciocínios adquirem algo de antigo e irreal, ao mesmo tempo que biriteiros, piranhas etc. formam a regra. Como uma ideologia entre outras, o repertório de causas naturalistas e sociológicas se integra a um tecido discursivo sem última palavra, que por sua vez funciona como elemento de um enigma mais amplo, formado pelo imenso negócio do crime, de contornos incertos, e pelo rumo da sociedade contemporânea, de cuja feição efetiva aquelas explicações não dão notícia.
Até certo ponto, a transcrição da fala popular, viva e enxuta ao extremo, à beira do minimalismo, faz contraste com essa argamassa. Por outro lado, pela brutalidade e constante repetição, ela pode também ser vista como a sua expressão pura e simples. A ousadia de linguagem mais notável, no entanto, vem por conta de uma inesperada insistência na poesia -à qual se pode objetar muita coisa, menos o grande acerto de sua presença. Nela se combinam os recursos da letra de samba e uma versão abandidada do trocadilhismo concretista -a epígrafe do livro é de Paulo Leminski-, cujas possibilidades populares aparecem aqui de maneira interessante. A importância deliberada e insolente da nota lírica, que faz frente ao peso esmagador dos condicionamentos pela miséria, dá ao romance um traço distintivo, de recusa, difícil de imaginar num escritor menos inconformado. Seria interessante refletir sobre a ligação entre este lirismo improvável e a força necessária ao deslocamento do ponto de vista de classe -de objeto de ciência a sujeito da ação- que observamos a propósito do papel da enquete social da obra.
"É tudo verdade", avisava Balzac na abertura de um romance cheio de lances de imaginação extremada. Também para Paulo Lins não se trata de negar a parte da ficção, mas de lhe acentuar o valor de prospecção e desvendamento. Diante da tarefa de romancear a sua vasta matéria, o escritor lança mão de apoios de toda sorte, que vão de "Crime e Castigo" e "Angústia" às superproduções de cinema. Há bastante proximidade com a imaginação sensacionalista e comercial de nossos dias, mas em espírito oposto, antimaniqueísta, antiprovidencialista, anticonvencional. A pauta é dada pelo atolamento das intenções -Mané Galinha, o bandido simpático e vingador, vai ficando igual a seus inimigos- e pela dissolução geral do sentido, o qual, embora enérgico, não se sabe qual seja. Por esse lado estamos no âmbito válido e sem consolações baratas da arte moderna. Assim, nas cenas de ação coletiva em grande estilo, interrompidas e retomadas em função do suspense, quando polícia e bandidos vão para o duelo decisivo à la Hollywood, tudo termina em desencontro: a morte não falha, mas chega antes do clímax programado, por mãos que não interessam e por motivos meio esquecidos que não estavam na ordem do dia. Noutro passo o melhor malandro da Cidade de Deus acaba como vítima de um carro que deu marcha a ré. Por sua vez o pior malfeitor do romance morre sumariamente com um tiro na barriga, que não restabelece a justiça nem reequilibra o mundo.
Atrás desse anticonvencionalismo militante se desenha outra transição mais sutil, entre etapas da contravenção, que tampouco edifica. Quando morre Salgueirinho -o bom malandro morto pela marcha a ré-, choram escolas de samba, namoradas, amigos e discípulos, com ele se vai um pedaço da sabedoria que mandava assaltar só na área dos outros, não brigar à toa, pois há mercadoria para todos etc. Quando morre Cabeção, o detestado detetive responsável pela ordem, a comoção é de outra espécie, mas a favela também vibra. Já quando morrem os novos bandidos, os filhos autênticos da neofavela, não acontece nada. Digamos que a forma anterior de marginalidade era bem mais simpática, para não dizer menos anti-social. Assim, nos meses de preparação do Carnaval, os malandros, ladrões e piranhas assaltam a todo vapor, para levantar recursos para a escola de samba. Os crimes, que certamente não deixam de ocorrer no processo, são como que equilibrados pelo objetivo maior e comum, que alegra a cidade. É como se dentro das desigualdades houvesse uma certa homeostase do todo, até certo ponto tolerável, que a guerra do narcotráfico vem romper. No interior desta última e de suas exigências sem perdão, a alegria da vida popular e o próprio esplendor da paisagem carioca tendem a desaparecer, o que é um dos efeitos mais impressionantes do livro.
Segundo uma boa fórmula, a sociedade atual está criando mais e mais "sujeitos monetários sem dinheiro". O seu mundo é o nosso, e longe de representarem o atraso, eles são resultado do progresso, o qual naturalmente qualificam. No íntimo, o leitor sente-se em casa com eles, pois tendem a realizar o sonho regressivo comum da apropriação direta dos bens contemporâneos.

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