São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Homens impiedosos

A tortura predileta dos piratas era o encordoamento: cordas muito finas eram "torcidas em volta das cabeças até que os olhos saltassem do crânio"
Muito do que se conhece sobre os piratas do Caribe à época de Harry Morgan vem do "Buccaneers of America", de Alexander Exquemelin. Ele afirma no livro: "não conto histórias com base no diz-que-diz, mas somente as que testemunhei".
Nascido no porto do canal francês de Honfleur, Exquemelin chegou em Tortuga por volta de 1666, na condição de colono. Vendido a um médico-cirurgião, aprendeu seu ofício, conquistando então a liberdade. Estando "nu e desprovido de todas as necessidades humanas", escreveu ele, "decidi aderir à ordem vil dos piratas". Por cinco anos serviu com os bucaneiros, chefiados tanto por Henry Morgan quanto por François l'Olonais, unindo-se a eles nos ataques fora de Tortuga e Port Royal e sendo generosamente pago por suas habilidades médicas.
Rompeu com Morgan depois do ataque ao Panamá, do qual participara. Tal como muitos dos bucaneiros, acreditava que Morgan o enganara. Depois do assalto, Exquemelin retornou para a Europa e, em Amsterdã, publicou seu best seller. Mais tarde voltaria ao Caribe, juntando-se em 1697 ao ataque conjunto francês e bucaneiro a Cartagena e, mais uma vez, servindo de cirurgião aos piratas.
O relato de Exquemelin sobre as atividades de François l'Olonnais -nascido David Nau, no oeste da França, em Les Sables d'Olonne (daí seu apelido: o homem de l'Olonne)- justificava as demais designações de l'Olonais: "Fléau des Espagnols", ou mangual dos espanhóis. Também ex-colono, juntou-se aos caçadores de gado de Hispaniola, vindo a futuramente se tornar bucaneiro. Era um psicopata, cuja tortura e assassinato de prisioneiros haviam se tornado tão temidos em todo o Caribe que começou a enfrentar oposição muito mais firme do que a maioria dos piratas. Os navios mercantes, dizia Exquemelin, "lutavam até que não pudessem mais".
E não lhes restava saída, uma vez que o homem de Olonne era impiedoso. Era prática comum dos piratas torturar os prisioneiros, tal como os homens de Morgan haviam feito no Panamá, a fim de obter informações. A tortura predileta dos piratas era "encordoamento", uma referência à palavra que designa amarrar cordas em volta de um mastro. Exquemelin descreve como cordas muito finas eram "torcidas em volta (das) cabeças até que (os) olhos saltassem do crânio".
No entanto, l'Olonnais claramente se divertia em torturar homens, do mesmo modo que gostava de apropriar-se de seus objetos de valor: "Quando l'Olonnais já havia feito a vítima sofrer bastante, caso o infeliz não respondesse sua pergunta imediatamente, ele o cortaria em pedaços com o cutelo e lamberia o sangue da lâmina com a língua, desejando que fosse o último espanhol no mundo a ser morto por ele desse modo". No fim da vida, l'Olonnais deparou-se com um destino igualmente bizarro, se é que podemos acreditar na história de Exquemelin de que ele foi capturado no golfo de Darien, perto do Panamá, por canibais, cortado em pedaços e assado, membro por membro.
Juntamente com o livro de Exquemelin, a outra grande fonte é "General History of Pirates", de Charles Johnson, publicado em 1724. Desde o começo da década de 1930 esse livro passou a ser atribuído a Daniel Defoe e assim está catalogado na maioria das bibliotecas. Essa autoria é sustentada por Jan Rogozinski em sua abrangente enciclopédia "Pirates!" (2). Mas Cordingly, dando sequência à pesquisa de P.N. Furbank e L.R. Owens, sustenta que nenhuma parte da documentação liga Defoe a "General History". Infelizmente, pouco se sabe do misterioso capitão Johnson, embora sua história tenha dado origem à maioria dos relatos posteriores, roteiros de filmes e mitos sobre piratas.
Dessa forma, mesmo que Defoe não seja o autor, o problema da distinção entre fato e ficção ainda permanece. Em um caso de reputação duvidosa, contudo, o de Edward Teach, famoso como Barba Negra, Cordingly demonstra convincentemente que a descrição de Johnson estava próxima da verdade. O tenente Maynard, que o matou em combate no convés de seu navio em Ocracoke, na enseada de Pamlico, na Carolina do Norte, em novembro de 1718, escreveu posteriormente que o capitão Teach "adotou o nome de Barba Negra porque deixava a barba crescer, amarrando-a com fitas pretas". De acordo com Johnson, Teach usava essas fitas para prender sua barba em pequenos rabichos em volta das orelhas, e enfiava fósforos acesos sobre seu chapéu quando se encontrava pronto para agir, de forma que "seus olhos, naturalmente dando a impressão de ferocidade e selvageria, faziam de todo o conjunto tal figura que a imaginação nem pode compor uma idéia de fúria, do Inferno, que se mostrasse mais assustadora".
Os piratas do Mediterrâneo, na costa berbere, eram chamados de corsários e atuavam em Argel, Túnis, Salé e outros portos no norte da África, onde os governantes muçulmanos concediam-lhes licenças para atacar os navios cristãos. Usando galeras velozes movidas a remo e vela, atacavam navios mercantes lentos e abundantemente carregados; pilhavam o carregamento, capturavam passageiros e tripulação e mantinham-nos para resgate ou vendiam-nos como escravos. Como possuíam uma licença, o corsário estava tecnicamente dentro da lei, e o termo foi empregado sem uma designação geográfica particular, fosse em francês, italiano ou português, mas, em inglês, referia-se mais restritamente aos assaltantes dessa região africana.
A imagem literária dos piratas berberes, e igualmente a dos bucaneiros, ganhou corpo com sua crescente fama. "O Corsário", de lorde Byron, conta em dísticos a história do orgulhoso e tirânico pirata Conrad, que, segundo Cordingly observa, "possuía os vícios de um vilão gótico com os ideais de um nobre fora-da-lei". E, para aumentar ainda mais a confusão, embora o poema fosse ambientado no Egeu, Byron inspirou-se -segundo Rogozinski- em uma matéria de jornal sobre as proezas de Jean Lafitte no golfo do México.

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