São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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O voto da tripulação

No dia de sua publicação, em 1814, "O Corsário", que futuramente viria a inspirar obras de Verdi e Berlioz, vendeu 10 mil exemplares e foi editado sete vezes em um só mês.
Ironicamente, em 1816, apenas dois anos depois, uma frota conjunta da Inglaterra e Holanda bombardeou Argel, praticamente destruindo os verdadeiros corsários, ameaçando seriamente a frota mercante. Cordingly utiliza o quadro "O Bombardeio de Argel", de George Chambers, do Museu Nacional Marítimo de Londres, como ilustração da capa de seu livro, ainda que tenha muito pouco a dizer sobre corsários e critique os produtores de cinema de Hollywood por colocarem seus piratas naqueles tipos de embarcação grande, com três mastros, fortemente armadas, pertencentes a um período posterior às guerras, e bem distantes dos navios menores e mais ágeis preferidos pelos bucaneiros do Caribe.
Robert Louis Stevenson foi mais preciso em "A Ilha do Tesouro" com o papagaio de John Silver, capitão Flint, como no momento em que Silver conta a Jack Hawkins que o pássaro estivera "em Madagascar, no Malabar, em Suriname, Providence e Portobello. Assistiu à recuperação dos galeões naufragados. Foi lá que aprendeu 'Peças de oito', e não admira. Havia ali mais de 350 mil, Hawkins!" (3).
"Peças de oito" foram as mais famosas moedas associadas à tradição pirata. Eram moedas de prata de oito "reales". "Peças de oito" cunhadas no Peru ou México mostravam o brasão espanhol em um dos lados e um desenho representando os pilares de Hércules, do outro, simbolizando os limites do Velho Mundo no estreito de Gibraltar. No século 18, foram acrescentados a esse desenho dois hemisférios inseridos entre os pilares, representando o Novo e o Velho Mundo. As "peças de oito" tornaram-se tão comuns no comércio oceânico que o par de pilares veio ser o símbolo do dólar (moedas de ouro eram escudos, e o famoso dobrão espanhol era uma moeda de ouro de oito escudos).
A presença generalizada da prata espanhola e de moedas de ouro em narrativas sobre piratas não se deu por acaso e ajuda a explicar o passado histórico e geográfico da pirataria, aspecto em grande parte ausente do livro de Cordingly. As primeiras incursões de corsários franceses, ingleses e holandeses em mares caribenhos foi uma resposta das nações marítimas à pretensão da Espanha ao monopólio sobre o Novo Mundo e à consequente exploração de minas de prata no norte do México e parte dos Andes. Por volta de 1570, a prata hispano-americana supria na Europa e Ásia a grande demanda por moedas, comércio e metal empregado em decoração; a prata espanhola teve grande impacto também no comércio e navegação no Atlântico e, depois, no Pacífico.
As notícias sobre as riquezas do Novo Mundo espalharam-se rapidamente. Apenas dois anos depois da queda da capital asteca, em 1521, um pirata francês, Jean Fleury, capturou duas caravelas espanholas perto do Cabo de São Vicente, em Portugal, deparando-se com impressionante tesouro asteca pilhado por Cortez. Os corsários franceses logo chegariam ao Caribe. O capitão François le Clerc, conhecido como "Jambe de Bois" (perna-de-pau), devido a sua perna de madeira, saqueou Santiago de Cuba em 1554, e os ingleses, personalizados nas terríveis figuras de Hawkins e Drake, fizeram o mesmo.
No final do século 16, a fim de proteger seus navios contra ataques, os espanhóis montaram um sistema de escolta armada entre o Caribe e Europa. O tesouro mexicano era então embarcado em Vera Cruz, enquanto que a prata proveniente do Peru era transportada de Nombre de Dios, e, mais tarde, Portobello, para o istmo do Panamá. Os galeões encontravam-se em Havana para se abastecerem de víveres e água para a viagem à Espanha. As frotas saídas da Europa passavam o inverno no fortificado e protegido porto de Cartagena, na costa norte da América do Sul.
A escolha do momento oportuno para os ataques dos piratas, corsários e bucaneiros aos portos espanhóis e frotas com tesouros seguia, portanto, uma estratégia lógica, definida pela geografia. Os corsários franceses tomaram e queimaram Cartagena e Havana em 1559; sir Francis Drake atacou Nombre de Dios em 1572 e saqueou Cartagena em 1585. A Espanha despendeu enorme esforço para tornar as defesas desses portos o mais invulnerável possível, como ainda se pode ver pelas muralhas no porto de Havana. Mas, ao concentrar tão amplamente suas forças na proteção dos tesouros das frotas, a Espanha praticamente abandonou o restante do Caribe aos piratas, e holandeses, franceses e ingleses em pouco tempo preencheriam esse vácuo.
A faixa de navegação dos bucaneiros e a localização estratégica de seus esconderijos eram, em boa medida, definidos pelas rotas marítimas nos oceanos Índico, Atlântico e no Caribe: as Bahamas eram utilizadas para pilhar os navios espanhóis que vinham dos portos do istmo do Panamá e México e que estavam a caminho da Europa; Tortuga era o local de ataque aos navios mercantes que, abastecidos na Jamaica e Caribe, seguiam para Europa e África; Madagascar situava-se perfeitamente na rota dos navios que faziam comércio no oceano Índico.
Havia também um padrão sazonal nas viagens dos piratas. Os meses de inverno eram passados no Caribe, e, em abril ou maio, os bucaneiros às vezes rumavam para o norte. O Barba Negra estava na costa da Virgínia em outubro de 1717; em 1718 ele atacou Charleston, na Carolina do Sul, bloqueou o porto e manteve a cidade sitiada. Nos invernos seguintes, saqueou navios na costa de St. Kitts e na baía de Honduras. Os piratas também vasculharam a costa da África ocidental em busca de ouro, marfim e escravos, e também circundaram a América do Sul, tal como Drake fizera, para se apossarem dos navios espanhóis com tesouros que estivessem no Pacífico.
Cordingly fornece alguns dados novos sobre a incipiente democracia pirata. No navio pirata, o capitão era eleito e eventualmente deposto pelo voto da maioria da tripulação. Na maioria dos casos era a tripulação, e não o capitão, que decidia sobre o destino das viagens piratas e o momento do ataque. John Rackham, também conhecido como Calico Jack (calico é um tipo de chita), devido às roupas coloridas que usava, assumiu o comando de uma embarcação pirata em 1718, servindo-se de ameaças a um capitão que desistira do ataque a uma fragata francesa que navegava a favor do vento, sendo então eleito em seu lugar.
Henry Avery, ou Long Ben, ex-aspirante à marinha real, passou à direção do corsário Charles em 1694, em mares da Espanha, quando seu capitão se revelou não estar à altura do cargo, incapacitado pela bebida. Avery rebatizou o navio de Fancy e zarpou para Madagascar e Mar Vermelho, onde, à espera de uma emboscada contra os navios peregrinos que se dirigiam da Índia à Meca, capturou o Ganj-i-Sawai, o maior dentre os navios do grão-mogol da Índia, ataque esse que rendeu a cada homem mil libras.
A façanha de Avery em breve seria comemorada nos palcos de Londres, no Teatro Real, em Drury Lane, em 1713, com o melodrama "The Successful Pirate" (O Pirata Bem-Sucedido), ficando um bom tempo em cartaz, e que, conforme Cordingly faz notar, deu início a uma sucessão de melodramas de temática pirata, mais tarde parodiados em opereta de Gilbert e Sullivan. O próprio Avery morreu indigente no porto pesqueiro de Bideford, em Devon, tendo perdido sua riquezas em trapaças de comerciantes locais e "sem valer sequer o preço de um caixão".
As tripulações das embarcações piratas frequentemente firmavam contratos por escrito que estabeleciam as regras de comportamento a bordo, critérios de distribuição das pilhagens, além de definirem os valores das indenizações pelos ferimentos (600 "peças de oito" pela perda do braço direito, 500 pelo braço esquerdo, 100 pela perda de cada olho ou dedo). Trapaça entre os próprios piratas implicava pesadas retaliações. De acordo com os estatutos elaborados pelos homens chefiados por Bartholomew Roberts, a punição para aquele que desertasse da companhia seria abandoná-lo em ilha ou cabo deserto. Nos casos em que o "roubo fosse apenas entre os pares", depois de "fazer um talho nas orelhas e nariz daquele que fosse culpado", o pirata infrator era abandonado em alguma região sabidamente desabitada. Os estatutos da tripulação de Robert determinavam que as luzes fossem apagadas às 20h; após esse horário, aqueles "ainda dispostos a uma bebida" tinham que se dirigir ao convés.

Continua à pág. 5-6

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