São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Sedução a bordo

As bandeiras piratas eram vermelhas e negras, adornadas com caveiras, corações sangrentos, ampulhetas, lanças, cutelos e esqueletos. Por volta de 1730, caveiras e ossos cruzados sobre um pano negro haviam deposto outros símbolos e foram adotados pelos piratas ingleses, franceses e espanhóis, nas Índias Ocidentais. O capitão Richard Hawkins, capturado por piratas em 1724, descreveu como eles "hasteavam Jolly Roger (pois assim chamam sua insígnia negra, no meio da qual um grande esqueleto segura em uma das mãos um dardo atravessando um coração sangrento e, na outra, uma ampulheta). Quando lutam sob Jolly Roger, têm o inimigo à sua mercê, o que não ocorre quando lutam sob a bandeira vermelha ou ensanguentada".
No começo do século 18, os piratas eram jovens com idade média de 27 anos. Muitos capitães piratas se recusavam a aceitar homens casados. Edward Low, de Boston, era inflexível ao afirmar que "não poderia admitir com ele sequer um sob a influência de atrativos tão poderosos como uma esposa e filhos, para que não se tornassem resistentes ao seu comando...". O artigo 6º de um código de conduta pirata decretava que "nenhum garoto ou mulher seriam permitidos entre eles. Se qualquer homem fosse descoberto seduzindo qualquer pessoa do sexo mencionado por último, e a tivesse levado a bordo, disfarçada, seria sentenciado à morte".
O historiador B.R. Burg sugeriu, alguns anos atrás, que as tripulações de pirata exclusivamente masculinas eram com frequência de homossexuais (4). Cordingly não está convencido (nem esteve Christopher Hill) (5), apesar de estar bem menos certo sobre as inclinações dos capitães dos navios e seus jovens criados e camareiros. Ele assinala o caso de Samuel Norman, por ele descoberto entre a papelada do Tribunal Superior da Marinha. Era o jovem Richard Mandervell, de 14 anos, quem dava banho no capitão Norman enquanto o navio esteve ancorado em Oporto, e o capitão "fazia uso carnal dele e foi posteriormente culpado do crime normalmente chamado bestialidade ou sodomia, e por duas vezes mais fez uso do Informante do mesmo modo...".
O comportamento do capitão Norman, contudo, na verdade não toca na questão mais ampla levantada por Burg. Portugueses donos de pequenos estabelecimentos comerciais no Brasil -cuja atividade sexual não era absolutamente refreada quando na companhia exclusivamente masculina nos navios- eram regularmente investigados pela Inquisição por procurarem empregar funcionários homens. E o capitão Norman, atracado perto do ancoradouro de Oporto, poderia ter ido ao continente em busca de companhia feminina, se assim o tivesse desejado. Rogozinski vai mais a fundo, com "Pirates!", ao descrever como os bucaneiros reconheciam um relacionamento com o mesmo sexo, denominado "matelotage" -camaradas que eram companheiros ("mates"), compartilhavam infortúnios, lutavam lado a lado e dividiam posses (6).
O capitão pirata Edmund Cook navegou durante muitos anos junto com um criado de nome desconhecido que, capturado, viu-se forçado a confessar que "seu Mestre havia repetidas vezes praticado sodomia com ele na Inglaterra..., na Jamaica...; e uma vez nesses mares diante de Darien". A confissão aparentemente não ofendeu o restante da tripulação. Bartholomew Sharp retornou à Inglaterra, em 1682, levando consigo um garoto espanhol de 16 anos capturado na América do Sul, enquanto que o capitão George Shelvocke enfureceu sua tripulação ao promover seu camareiro a primeiro piloto.
Havia piratas do sexo feminino que se vestiam com roupas masculinas, e as mais famosas delas foram Mary Read e Anne Bonny, que navegaram com o capitão John "Calico Jack" Rackham para além de New Providence, nas Bahamas. Em seu julgamento por pirataria, em 1720, na cidade de St. Jago de la Vega -hoje Spanish Town, na Jamaica- uma das testemunhas contra elas, Dorothy Thomas, afirmou: "Ambas carregavam machete e pistola nas mãos, e gritavam e xingavam para os homens, instando-os a assassinar a depoente (isto é, Thomas); dizendo que deveriam matá-la para impedi-la de ir contra eles; e a depoente falou adiante que a razão de ela saber e acreditar que então se tratava de mulheres era pelo tamanho de seus bustos".
Read e Bonny, "o tamanho de seus bustos", no entanto, haviam se apaixonado, cada uma pensando ser a outra um homem, ou pelo menos foi o que disseram a Calico Jack. Condenadas por pirataria, receberam a sentença de morte por enforcamento, pena essa suspensa no último momento, quando se descobriu a gravidez de ambas. Calico Jack teve o mesmo destino de muitos condenados por pirataria -foi colocado em uma gaiola de ferro e enforcado em um cadafalso no recife de Deadman, uma pequena ilha avistando Port Royal, hoje conhecida como recife de Rackham-, e seu cadáver foi revestido de alcatrão para preservá-lo e servir como alerta a outros.
As tripulações piratas eram de nacionalidade e raça múltiplas. Contrabandistas e piratas holandeses apareceram no Caribe depois da expulsão de comerciantes holandeses da Península Ibérica, em 1598, e saqueadores holandeses free-lance continuaram a atacar navios nas Índias Ocidentais até o começo do século 18. Corsários franceses eram bastante ativos no Caribe no início do século 18, e a guarda costeira espanhola frequentemente desferia ataques com free-lance nas colônias inglesas.
As tripulações das embarcações piratas muitas vezes incluíam negros africanos. Cordingly supõe que eram escravos e acredita que, apesar do presumível desprezo dos piratas brancos para com os costumes da época, seria improvável que aceitassem negros como pares. Mas esse parece ser um julgamento apressado.
Os navegadores africanos haviam participado das viagens oceânicas dos portugueses por mais de dois séculos antes de os bucaneiros perambularem nos mesmos mares. As telas de pinturas japonesas ilustrando a chegada de galeões portugueses na baía de Nagasaki, no século 16, mostram marinheiros africanos nos cordames. O fato de os piratas roubarem escravos e vendê-los como parte de sua pilhagem de forma alguma eliminava a participação de piratas negros nos saques e vendas de carregamento humano, do mesmo modo que não impedia africanos de venderem outros africanos para fins de escravidão.
Contudo, à medida que o poder espanhol diminuía e o francês e inglês aumentava, os piratas começaram a ser encarados de forma bastante diferente; não mais eram vistos como potenciais aliados em tempos de animosidade -como haviam sido os corsários-, mas como inimigos do bom comércio. Como, pergunta Cordingly, foi que os piratas adquiriram uma imagem heróica e relativamente afável? A resposta reside no começo da literatura inglesa sobre piratas, que, muitas vezes, conjuga os corsários antiespanhóis da Inglaterra elizabetana com os predadores de uma época posterior.
Sob a tradição antiespanhola e anticatólica, não é de surpreender que os leitores de histórias de piratas ao final do século 17 e começo do 18 mostrassem pouca simpatia pelas vítimas espanholas. Em todo caso, "chamuscar a barba do rei Filipe" e a de seus sucessores era encarado como obrigação patriótica de qualquer verdadeiro inglês (ou galês), pirata ou corsário; e essa foi, em essência, a justificativa do capitão Morgan para suas atrocidades no Panamá.

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