São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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A economia da consumação

GILSON SCHWARTZ
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um palito de fósforo risca a caixa. Da explosão em miniatura brota uma chama que desconhece limites. Logo o corpo de madeira vai sendo consumido, a haste verga e a chama se apaga. Que energia é essa que frequenta os corpos e os abandona como fósforos usados?
Georges Bataille, pensador maldito, teórico do erotismo, próximo do surrealismo e depois do estruturalismo, literato, bibliotecário e "intelectual", investigava essas energias. Figura dos bastidores, ficou nos rodapés de Foucault, Lacan e Barthes. Esteve próximo do consenso crítico de sua época mas, influenciado por um certo misticismo oriental, colocava-se como horizonte o silêncio e a morte. Acabou criando seu próprio universo paralelo e inacabado, marcado por estilhaços de hegelianismo, antropologia, linguística, psicanálise e marxismo.
A civilização francófona chega ao século 20 com as mais intensas ambições científicas no campo das ciências humanas. Émile Durkheim criara a sociologia, os economistas trabalhavam sobre o modelo de equilíbrio geral de Léon Walras e, na antropologia, Marcel Mauss e Claude Lévi-Strauss implodiriam o edifício etnocêntrico e biologístico legado pelo século 19.
Tremendo avanço da ciência social, como se sabe, coincidiu com a liberação de pulsões de massa, energias destrutivas que brotaram de uma dilatação patológica da representação democrática. Houve Auschwitz.
Na economia, sabe-se bem qual foi a saída. O "keynesianismo" (de J.M. Keynes, economista inglês) inaugurou a desconfiança reformista nas engrenagens do capitalismo. O gasto público, a poupança forçada, o Estado regulador, as tentativas de controlar a especulação financeira tornaram-se o receituário hegemônico da segunda metade do século 20.
O curioso e pouco notado nos últimos anos é ter sido Bataille, nietzscheano que faz o elogio da vontade de transgressão a partir de Sade, um autor que dedicou boa parte da vida à elaboração de um pensamento "geral" sobre a economia.
No lugar dos mecanismos econômicos, Bataille partiu para uma antropologia simbólica da economia. E chegou a resultados semelhantes aos do próprio Keynes.
Sua obra econômica, "A Parte Maldita", queria ser uma inversão tão ácida da moral dominante quanto sua visão do erotismo.
O ponto de partida foi o estudo da troca feito pelo antropólogo Marcel Mauss (1925). Um caminho que conduz à rejeição simultânea do liberalismo e do marxismo.
Alegando a insuficiência do princípio da utilidade clássica, como Keynes, Bataille reabre o exame dos pressupostos da troca, a operação econômica elementar. Afinal, qualquer manual de economia mostra que a base do cálculo é a utilidade que se atribui aos objetos escassos. Sem essa utilidade, como calcular?
Mauss projeta luz sobre formas pré-mercantis de intercâmbio, ou seja, formas de circulação de objetos em sociedades primitivas que não se traduziam em preços ou medidas quantitativas de valor.
São outros os princípios de reciprocidade que animam a "dádiva", por exemplo, ou o sacrifício (contato e contrato com o que está além do humano). Na dádiva, impera a qualidade. Na troca mercantil, instaura-se o domínio da quantidade, e assim se chega ao preço, fundamento do sistema de mercado.
Keynes, nos mesmos anos 20 em que Mauss estuda a troca e em que Bataille se angustia com os mistérios de Eros, analisa o sistema monetário grego.
Há esferas de troca distintas da mercantil e entre os sistemas que coexistem são estabelecidas convenções. Elas dão sentido e ordenam as medidas de valor.
Esse caráter convencional do valor relativo está presente em Keynes, em Mauss e em Bataille.
Para Adam Smith e o pensamento liberal, a troca é uma entidade abstrata que existe sempre, em qualquer momento da história (basta os indivíduos atribuírem utilidades comparáveis aos objetos disponíveis para a troca).
Para Marx e muitos marxistas a troca é igualmente abstrata, mas é uma abstração que resulta de uma forma de dominação estabelecida, uma alienação, um fetiche.
Bataille rejeitou as visões quantitativas da troca e abandonou também o marxismo da juventude.
Contra a funilaria mecanicista dos economistas, Bataille propõe uma visão geral da economia. Contra o princípio da escassez e da utilidade, da busca de lucro e da satisfação passiva do consumidor, denuncia uma abundância inevitável e inaceitável, um excedente cuja acumulação conduz à morte e aniquila os indivíduos.
Contra a racionalidade automática do mercado, coloca-se em questão esse excedente não consumido, o mesmo paradoxo da pobreza em meio à abundância que inquietava Keynes.
Contra os mitos de equilíbrio entre as quantidades trocadas, Bataille explicita as estruturas elementares em que reaparecem o sacrifício, a dádiva, o excesso e a "destruição criadora".
A novidade de Bataille está na ousadia de colocar entre parênteses o olhar racional para revelar outras ordens, qualitativas, nas quais é possível repensar e agir sobre o mercado.
No lugar do mercado como um princípio de funcionamento da economia, Bataille aponta para o mercado como um espaço onde várias alternativas são possíveis. Um espaço onde desembocam energias, pulsões e desejos com relação aos quais talvez sejam necessárias estratégias não-mercantis, de sacrifício, de desperdício, de "despesa". É um mercado sem princípios transcendentais nem sujeitos cuja autonomia possa ser tomada como um dado natural.
A própria troca (e o sistema de preços) deixa enfim de ser fundamental para o entendimento da dinâmica econômica e, como em Keynes, constatada a tendência irreversível do sistema a um excedente, a questão se converte em como "gastar" o excedente. O texto seminal de Bataille é "A Noção de Despesa", publicado em 1933 (com menos de 30 anos, ele antecipa a mensagem keynesiana).
Como, entretanto, justificar a construção de pirâmides, a abertura de buracos para enterrar garrafas, um Plano Marshall (analisado ao fim de "A Parte Maldita"), o sacrifício enfim do excedente ou a sua doação para os mais pobres para evitar que uma dinâmica cumulativa culmine em catástrofe?
Essa é a inquietação de Bataille que, muito freudianamente, sabia dos perigos da sublimação ou da repressão do desejo.
É nesse momento que seus estudos sobre o erotismo recolocam a economia noutra perspectiva, em que o reconhecimento do excesso e a ousadia de transgredir o mito da alocação racional dos recursos permitem a postulação de uma nova ordem. Ordem que não é instaurada apenas nos domínios do mercado ou do Estado, mas que afeta todo o campo simbólico.
Ganhou força na França uma certa "culturalização" da economia. O estruturalismo desde o princípio projeta no campo simbólico soluções comuns à psicanálise, à antropologia e à economia.
Bataille é uma parte, certamente maldita, dessa tendência intelectual. Mas que é retomada em autores mais recentes, como "A Violência da Moeda", de Michel Aglietta e André Orléan. Aglietta é um notável especialista na questão monetária européia e Bataille uma de suas obras de referência.
Outro destaque recente é Jacques Attali (que até pouco tempo atrás presidia o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento - Berd), definindo o horizonte cognitivo a partir de três mundos ou três "grandes lógicas de integração social": a ordem ritual, a ordem imperial ou política e a ordem mercantil. Em cada ordem uma "soberania" é instituída: o sacrifício, a lei e a moeda.
Em comum, as ordens têm a transformação de uma violência recíproca e destrutiva em violência unânime e institucionalizada. Essa metamorfose energética é a base vital das instituições.
A economia torna-se um capítulo de uma teoria geral da administração das energias e formas de vida. São metáforas, aliás, que vêm de longe -a começar dos (também franceses) médicos-economistas fisiocratas.
Bataille não está portanto sozinho, ainda que o pensamento econômico tenha sublimado essas energias e "excedentes" em nome da crença em mecanismos automáticos de equilíbrio do mercado.
Bataille foi um precursor da percepção do simbólico como fundamental na economia (como, depois, diria Jean Baudrillard).
Para os mais críticos, é no sistema financeiro que culminam essas visões orgânicas e vitalistas do fenômeno econômico. O pânico e as profecias auto-realizáveis revelam a energia violenta oculta sob os cálculos.
Nesse olho do furacão concentram-se as energias excedentes do mundo todo. O problema é saber quem vai riscar o fósforo e se do consumo, inofensivo, não brotarão energias terríveis a ponto de levar o capitalismo aos limites de sua própria consumação.

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