São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Mito nasceu na catedral de Saint Paul na catedral

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Queiramos ou não, gostemos ou não do que foi e do que representou lady Di, o fato é que estamos diante de um dos grandes mitos da segunda metade do século. E as circunstâncias de sua morte ampliaram a sua presença no imaginário de todos.
Muitos foram os fatores que criaram mito tão poderoso. Por um acaso da vida profissional, presenciei o seu nascimento, quando a professorinha inglesa, terceiro time no almanaque "Gotha", ao entrar em campo na catedral de São Paulo, invadiu de forma fulminante o cenário mundial e deu início a uma edição ampliada e atualizada da história de Cinderela.
Seu casamento com o príncipe Charles foi realmente uma festa para inglês ver, com muita pompa e circunstância ao som da marcha homônima.
Em 1981, estava eu espremido num palanque reservado à imprensa em Ludgate Hill, vendo os 179 cavalos de Sua Majestade que puxavam as carruagens que pareciam ter saído de um filme de Walt Disney.
Aliás, o tom geral das bodas reais -que os ingleses chamam de "Royal Wedding"- era esse mesmo: a qualquer momento apareceria a Branca de Neve cantando "Some Day My Prince Will Come". Apenas o príncipe já havia chegado para lady Di: lá estava ele, aflito, muito preocupado em agradar não à plebe e aos convidados, mas à mãe, a rainha Elizabeth, que ficou de cara amarrada durante toda a cerimônia e só relaxou quando a última carruagem voltou para casa e os guardas fecharam os portões de bronze do Buckingham Palace.
Casamento de príncipe ou de bancário, no fundo dá no mesmo: eles botam o melhor terno, a melhor camisa, a melhor cueca, capricham no corte do cabelo, sabem que não serão o personagem principal da festa, mas querem aparecer da melhor maneira possível no papel de coadjuvante.
No caso de Charles, ele exagerou na brilhantina: seu cabelo estava ensopado, a gordura escorria pela testa e ele enxugava, sempre olhando para a mãe, meio apavorado, com medo de receber aquele olhar em que as mães -e os ingleses em especial- são mestres: o da censura.
As perspectivas do casamento eram razoáveis. Ninguém acreditava num mar de rosas perene para os noivos, mas pelo menos ali, diante do altar-mor da Catedral de Saint Paul -obra de Christopher Wren razoavelmente copiada de Bramante e Michelângelo- os prognósticos pessimistas ficaram em suspenso: todos curtiam a festa, inclusive o personagem mais gordo que vi em minha vida, o rei da Tanzânia, que derretia suas imensas banhas no calor da catedral ouvindo Kiri Te Kanawa cantar Handel -a mesma música que é cantada desde os meados do século 18 em cerimônias iguais. Não é à toa que a estátua de Handel está na abadia de Westminster, olhando de igual para igual os reis da Inglaterra. Ele merece.
Lady Di estava deslumbrante. Qualquer noiva, em Braz de Pina ou em Londres, fica deslumbrante na hora em que adentra a igreja. Coberta de jóias ou de trapos, é uma noiva -a mulher marcada para ser de um homem, matriz e fada, serpente e deusa: a noiva.
Seu vestido foi segredo de Estado até a véspera -e nunca presenciei tamanha inutilidade da imprensa, como um todo. Jornalistas de todo o mundo, inclusive eu, procurando saber como era, de que era feito e quem o fizera. Afinal, era apenas um vestido de noiva, mais suntuoso que o do Nélson Rodrigues, e sem a neura do drama. Pelo contrário: com um pouco de comédia.
O pai dela, lorde Spencer, ameaçou um enfarte na véspera, uma ambulância disfarçada de Rolls-Royce ou o contrário, um Rolls-Royce disfarçado de ambulância, seguiu o cortejo ao lado da sua carruagem, para entrar em ação a qualquer troço. Mesmo assim, lord Spencer entrou pela igreja amparado discretamente por uma dama de companhia. Parece que seu senso de orientação espacial estava avariado, temiam que o sujeito se perdesse entre os bancos, trombasse com os demais convidados, uma cena de Chaplin ou Buster Keaton colaria mal naquele instante e circunstância.
Não, não houve vexames. Foi uma cerimônia correta, digna, sempre sob o controle do olhar da rainha, que parecia ver tudo, tudo reprimir e tudo anotar. Os olhos dela são incomensuravelmente azuis, é pequenina de tamanho, mas tem aquilo que os entendidos chamam de "estatura". E o príncipe Charles, na hora em que disse o "sim" para o reverendo Robert Runcie, arcebispo de Canterbury, parecia que não estava casando por ele, mas para ela, sua rainha e mãe.
Dezesseis anos depois, quando lembro o casamento de Charles e lady Di, são poucas as imagens que realmente me ficaram. Em todo o caso, lembro a fofocada da imprensa londrina que vendia horrores com tudo aquilo. Na véspera, o príncipe jogara pólo com amigos, havia rumores de que a rainha não estava satisfeita com nada e lady Di chegara a chorar misturando motivos.
Motivos que não faltaram na tumultuada vida em comum que então se inaugurava. Detalhe revelador: fotógrafos de todo mundo queriam que eles se beijassem, aquele beijo convencional que encerra a cerimônia. Beijo que custou a vir e só aconteceu na sacada do palácio, quando o povo clamava, exigia o beijo tradicional.
O mesmo povo que foi para as ruas assistir ao filme de Walt Disney que se desenrolou ao vivo entre o palácio de Buckingham e a catedral de Saint Paul, foi novamente para as ruas se despedir daquela que ajudou a criar e a matar.

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