São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Calcutá abriu 'cruzada' de madre Teresa

DOMINIQUE LAPIERRE
DO "NEW YORK TIMES"

Foi observando a miséria e violência da cidade da Índia que a religiosa começou a se dedicar aos pobres

Assim que foi divulgada a notícia da morte de madre Teresa, uma onda de tremores pareceu atravessar a cidade de Calcutá, ponto de partida de sua "cruzada". Milhares de habitantes de todas as idades, ricos e pobres, de todas as castas e religiões, vieram correndo expressar sua dor.
O fato de madre Teresa ter morrido em Calcutá foi sua última saudação aos pobres da cidade, que embarcaram com ela numa das mais notáveis aventuras espirituais e humanas deste século.
Vi sua figura lendária pela última vez há poucos meses, durante a missa matutina na capela de seu convento na Lower Circular Road.
Observando-a naquela manhã, cercada por moças vindas dos quatro cantos da Índia para vestir o sári (vestimenta das mulheres hindus) branco das Missionárias da Caridade, não pude deixar de abençoar a cidade de Calcutá que, em meio a todas as adversidades, deu origem a tantas santas.
Já acompanhei muitas delas em suas visitas aos lares de moribundos, a leprosários, a orfanatos, aos asilos da Cidade da Esperança e de quase todas as cidades da Índia, sem falar em Beirute, Roma, Paris, Sydney e até mesmo o bairro de South Bronx, em Nova York.
Em todas essas ocasiões, fui testemunha do mesmo milagre. Era como se elas, por meio de uma vibração de esperança, quisessem anunciar aos miseráveis do mundo: "Estamos aqui, amamos vocês, não tenham medo".
Foi essa a mensagem de madre Teresa: proclamar à humanidade "que os pobres devem ser amados, porque foram criados pela mão amorosa de Deus".
Ela começou a forjar essa mensagem no caldeirão de miséria, injustiça e violência de Calcutá, onde sua vocação de missionária a enviara. Era filha de um empresário bem sucedido da cidade de Skopje -que, na época, ficava na Albânia-, onde nasceu há 87 anos, no dia 26 de agosto de 1910.
Agnes Bojaxhiu sentiu o chamado da vida religiosa cedo. Aos 18 anos, ingressou na ordem religiosa irlandesa das Irmãs de Loretto, escolhendo o nome Teresa por ser devota da santa de Lisieux.
Em 6 de janeiro de 1929, desembarcou no porto de Calcutá, na época a maior cidade do império britânico, depois de Londres.
Durante 16 anos, ensinou geografia às filhas da burguesia de Bengala Ocidental, numa das escolas de freiras mais aristocráticas da capital do Estado. Sua vida pacífica foi transformada após uma viagem de trem à cidade de Darjeeling, no dia 10 de setembro de 1946.
Quando o trem passava por um túnel, Teresa repentinamente ouviu um chamado em seu coração. "Foi uma ordem", contou.
"Tive que abandonar o conforto do convento, abrir mão de tudo e seguir Jesus. Servi-lo por meio dos mais pobres de seus pobres."
Tinha 36 anos. Sete meses depois, recebeu do Vaticano a permissão de deixar o convento e fundar uma nova ordem religiosa, dedicada a "cuidar dos doentes e moribundos nas favelas, educar as crianças de rua, cuidar dos mendigos e abrigar os abandonados".
Assim nasceu -pelas mãos de uma única freira, à qual, pouco depois, viriam se juntar dez jovens noviças de Bengala- a congregação das Missionárias da Caridade, uma ordem que hoje conta com mais de 5.000 irmãs, 500 irmãos consagrados e mais de 4 milhões de irmãos e irmãs leigos.
É uma ordem tão dinâmica que, por falta de espaço, não pode aceitar todas as candidatas que querem se juntar a ela -não apenas indianas, mas também japonesas, européias, australianas e norte-americanas, em cerca de 500 orfanatos, lares para leprosos e centros de resgate espalhados por cem países, nos cinco continentes.
As regras da ordem são rígidas. Além dos três votos habituais -pobreza, castidade e obediência-, as Missionárias da Caridade fazem um quarto voto, específico de sua ordem: "Colocar-se inteiramente e de todo coração à livre disposição dos pobres".
A velha clínica de Woodlands, onde madre Teresa morreu, fica a pouca distância do lugar onde sua cruzada começou.
A mulher que, na época, ainda era apenas a irmã Teresa, caminhava sob as chuvas das monções quando tropeçou no corpo de uma velha moribunda. Irmã Teresa parou, fechou os olhos da mulher, fez o sinal da cruz e orou a seu lado por alguns momentos. "Nesta cidade os cachorros têm tratamento melhor do que os seres humanos", refletiu.
Na manhã seguinte, ela foi à Câmara Municipal de Calcutá e acabou sendo recebida por um dos representantes do prefeito, a quem pediu "um lugar onde eu possa receber os moribundos e ajudá-los a comparecer diante de Deus com dignidade e amor".
Alguns dias mais tarde, a prefeitura pôs à sua disposição uma construção extravagante que servira de abrigo para os peregrinos hindus que visitavam o vizinho templo dedicado à deusa Kali, padroeira de Calcutá.
Madre Teresa enxergou no presente a intervenção de Deus, porque era em torno dessa área que muitos dos miseráveis se reuniam para morrer, na esperança de serem cremados nas piras funerárias do templo. A chegada da cristã usando um crucifixo sobre o sári provocou muita surpresa.
Pouco depois, os hindus ortodoxos começaram a reclamar. Começou a circular um boato de que Teresa estava ali para converter os moribundos ao cristianismo.
Começaram a ocorrer incidentes hostis. Um dia, uma chuva de pedras e tijolos saudou uma ambulância que levava homens e mulheres doentes encontrados nas ruas.
As freiras foram ameaçadas e insultadas. Teresa caiu de joelhos diante da multidão. "Matem-me!", gritou e elevou os braços ao céu no sinal da cruz. "Assim irei ao céu em menos tempo."
Delegações do bairro foram à prefeitura e à polícia pedir a expulsão da freira estrangeira. O chefe de polícia prometeu fazer o que lhe pediam, mas só depois de uma investigação. Ele encontrou madre Teresa cuidando de um velho que acabara de ser levado ao local.
Ele estava caído, magro como um esqueleto, sujo, com as pernas inchadas e com úlceras sangrentas.
"Meu Deus, como ela pode suportar tudo isso?" o policial se perguntou. Madre Teresa estava limpando as feridas do homem, falando em voz doce com ele, dizendo a ele que iria melhorar, que não precisava ter medo. O chefe de polícia ficou profundamente comovido.
Alguns dias depois, madre Teresa viu um grupo de pessoas diante do santuário vizinho. Um homem estava caído ao chão, branco como um cadáver. Em volta do ombro, usava a corda tripla sagrada dos brâmanes. Era um sacerdote do templo. Ninguém ousava tocar nele, porque tinha cólera.
Madre Teresa o tomou nos braços e o levou para dentro do abrigo. Ela cuidou do brâmane dia e noite, e ele sobreviveu. Pouco depois, ele declarava: "Durante 30 anos adorei uma Kali feita de pedra. Agora venero uma Kali feita de carne e osso."
A notícia da salvação inacreditável percorreu a cidade. Ambulâncias e furgões começaram a chegar ao local, carregados de pobres à beira da morte. Pouco depois, madre Teresa já dizia: "Nossa Casa do Coração Puro é a jóia de Calcutá". E a cidade a tomou sob sua proteção.
O prefeito, jornalistas e pessoas importantes vinham visitá-la. Senhoras da alta sociedade se ofereciam para trabalhar ao lado das freiras. Em 45 anos, madre Teresa recebeu mais de 100 mil pobres moribundos e famintos em seu abrigo.
No dia 15 de fevereiro de 1953, a nova instituição fundada por madre Teresa, Sishu Bhavan, a Casa das Crianças, recebeu seu primeiro hóspede, um bebê prematuro encontrado num lixão, embrulhado em jornais. O bebê pesava menos de 1,2 kg e estava tão fraco que não conseguia sugar leite. Teve que ser alimentado por um tubo inserido em seu nariz.
Madre Teresa lutou para salvar sua vida e conseguiu. Em pouco tempo, dúzias de bebês ocupavam os berços. Como alimentar todas as pessoas que agora tinha sob seus cuidados? "Deus cuidará disso", dizia. E Deus provou que estava certa. Cidadãos ricos enviavam arroz, cestas de legumes e peixes.
Embora a cidade de Calcutá fosse superpovoada, madre Teresa não hesitou em declarar guerra ao aborto -uma guerra que travou incansavelmente até a morte, proclamando por toda parte, como fez em Oslo diante dos dignitários reunidos para lhe conceder o prêmio Nobel da Paz.
Depois dos moribundos e das crianças, madre Teresa voltou sua compaixão aos leprosos. Havia milhares deles em Calcutá. Num terreno doado pela Companhia Ferroviária da Índia, ela ergueu um abrigo para alojar os doentes mais graves. Ela os visitava todos os dias, levando comida, cuidando de suas feridas e confortando-os.
Em pouco tempo centenas de leprosos acorreram a esse oásis de esperança. Ela convidou a população de Calcutá a juntar-se a ela numa enorme campanha para recolher alimentos e dinheiro para as vítimas da hanseníase.
Como emblema da operação, madre Teresa escolheu o antigo símbolo da doença: um sino, semelhante ao que os leprosos de séculos passados tinham que tocar para avisar as pessoas de sua presença amaldiçoada. Ela criou um slogan que foi reproduzido em jornais e cartazes espalhados pela cidade: "Vamos tocar um leproso com nossa compaixão".
O resultado superou as expectativas. Em pouco tempo, ela pôde iniciar a construção de uma cidade inteira reservada aos leprosos: Shanti Nagar ou a Cidade da Paz.
Foi uma conquista que atraiu a curiosidade da mídia. O conhecido jornalista e escritor britânico Malcolm Muggeridge desembarcou em Calcutá um dia para fazer um filme sobre a freira européia e suas irmãs indianas que praticavam a caridade. A experiência o tocou tão profundamente que ele se converteu ao cristianismo.
O filme foi transmitido por várias televisões do mundo e transformou madre Teresa numa estrela internacional, da noite para o dia. Outras cidades na Índia e no exterior começaram a lhe pedir que viesse abrir orfanatos ou abrigos para sem-teto.
Sempre que aceitava, o primeiro cômodo que erguia era sempre uma capela. Para ela, nenhuma ação era possível sem a ajuda da oração e o apoio da presença divina da eucaristia.
"Precisamos de um momento de silêncio todos os dias, para receber a Deus e sua palavra", ela dizia. "Não há razão para desistir, quando se sabe que é possível achar razões para ter esperança."

Tradução de Clara Allain

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