São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Nós, os abutres

CLÓVIS ROSSI

São Paulo - Em 1975, estava cobrindo a agonia do ditador Francisco Franco Bahamonde, "caudillo de España por la gracia de Diós". Uma noite, já tarde, a Rádio Nacional de Espanha soltou edição extraordinária, com o mais recente boletim médico sobre a saúde do generalíssimo.
Todos os órgãos, até aqueles dos quais eu jamais tinha ouvido falar, estavam afetados. Logo, parecia que a morte era iminente. Fomos (eu, Pedro Cavalcante e Paulo Sotero, ambos então na revista "Veja") para El Pardo, o palácio nas imediações de Madri em que o caudilho agonizava.
Era uma escuridão dos diabos e não havia muito a fazer, a não ser esperar e aumentar o estoque de piadas que se faziam a respeito (velório é igual em qualquer parte do mundo).
De repente, surge da escuridão um senhor em cadeira de rodas, empurrada por três ou quatro jovens (depois, descobrimos que era veterano da guerra civil vencida pelo franquismo, na qual ficara ferido).
O iluminador da TV francesa acendeu aqueles insuportáveis holofotes e o câmera foi para cima do homem. O pessoal reagiu com um furioso grito: "Vayanse, buitres" ("vão embora, abutres").
Fomos, não pelos gritos, mas porque Franco não ia mesmo morrer naquela noite.
Ficou o incômodo de ser obrigado a aceitar que o grito continha uma dose de verdade. Somos mesmo abutres.
Afinal, jornalismo nada mais é do que a técnica de lidar com a anormalidade, no limite com a aberração.
Quantos dias sobreviveria um jornal cujos títulos fossem, sempre, "trabalhadores trabalham", "estudantes estudam", "todos os aviões partiram e chegaram no horário", "nenhum político roubou nada hoje", "a princesa Diana não tem novo namorado"?
Não que os jornalistas, salvo um ou outro tarado, torçamos para que as aberrações ocorram. Elas simplesmente existem. O desafio diário é evitar viciar-se nelas.

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