São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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A política e os pobres na América Latina

ELIANA CARDOSO

Um colunista ganha reputação de profissional equilibrado começando um artigo crítico com a exposição do lado positivo de uma história macabra ou terminando uma história ruim com uma projeção otimista. Nada mais fácil na América Latina de hoje, onde contrastes e incertezas imperam.
Se acreditarmos nos discursos políticos, chegou a nossa vez: a inflação morreu, o crescimento voltou, os desequilíbrios fiscais encolheram -e haja capacidade de absorção para o capital externo, em busca de retornos mais altos do que os das regiões industrializadas.
Mas, depois dessa fogosa introdução, a lista de desafios não tem fim: vulnerabilidade externa, Previdência Social quebrada, poupança nacional baixa, esqueletos fiscais escondidos nos armários do Tesouro e do Banco Central, corrupção e, para terminar, uma população pobre que não pára de crescer. Distribuição de renda mais justa e fim da pobreza são os desafios inadiáveis, para os quais a resposta é mais democracia e mais crescimento.
Apesar da nova literatura relacionando crescimento e direito à propriedade, não está aqui a razão das baixas taxas de crescimento da América Latina. Seria muito difícil encontrar na nossa história exemplos de governos que não fossem da propriedade, pela propriedade e para a propriedade (de preferência, para a grande propriedade). A retórica inflamatória dos chamados governos populistas nunca se traduziu em ação em favor das massas e muito menos em favor dos pobres. Pelo contrário: políticas populistas dos anos 60, esquecidas das prioridades sociais, só geraram instabilidade ao fazer uso do financiamento inflacionário para subsidiar empresas estatais e privadas.
Na década de 80, ciclos de instabilidade, originados no excesso de endividamento da década anterior, culminaram em hiperinflação e levaram os economistas a descrever, mais uma vez, os regimes no poder durante os anos 80 como populistas. Com certeza, Sarney, Alfonsín, Alan García e os sandinistas governaram com inflação causada por déficits fiscais excessivos e crises do balanço de pagamentos. Os desequilíbrios macroeconômicos desses governos mostraram fortes semelhanças com as economias presididas por Perón, Vargas e Goulart, líderes comumente identificados com o populismo. Entretanto, nem Alfonsín nem Sarney têm a personalidade carismática e autocrática de um líder populista. Os fracassos dos planos de estabilização desses presidentes refletem apenas sua incapacidade de impor uma contração econômica a qualquer grupo da sociedade.
No final da década de 80 e começo dos anos 90, o sucesso do neoliberalismo marcou uma mudança fundamental na condução da política econômica. O consenso das instituições multilaterais e dos formadores de opinião convergiu para a necessidade de liberalizar o comércio internacional, privatizar as estatais e equilibrar os orçamentos do governo. Formadores de opinião e ministros da Fazenda olharam para o Chile e, em seguida, para o México como modelos do novo regime.
Na década de 90, os governos de Argentina, Brasil e Peru perseguiram estratégias semelhantes às do México e se distanciaram do populismo clássico. Mas nenhum desses governos conquistou um equilíbrio fiscal sustentável, e todos usaram recursos das privatizações para tampar buracos e mascarar a necessidade de reformas tributárias.
Em contraste com os líderes dos anos 80, os heróis dos anos 90 têm características comuns aos velhos populistas: personalidades carismáticas e autoritárias, com marcado desrespeito pelo Congresso e uso demagógico da propaganda e dos meios de comunicação.
Com certeza, as reformas dos anos 90 corrigiram em parte a orientação antimercado do velho populismo. Mas nem por isso esses novos regimes deixam de correr o risco do fracasso, provocado pelas mesmas razões que derrubaram a velha agenda populista: desequilíbrios fiscais, supervalorização do câmbio e conflitos sociais. Tendo matado a inflação, os governos se esqueceram da justiça social, e a crescente disparidade da distribuição de renda pode se transformar num entrave à estabilidade e ao crescimento.
A desigualdade na América Latina é maior do que a que existe em qualquer outra parte do mundo. É incomparavelmente maior do que a observada nos países industrializados ou na Ásia; só encontra paralelo na África. Nos últimos 25 anos, ela flutuou com os ciclos econômicos. O crescimento dos anos 70 reduziu a pobreza, mas a recessão e a inflação dos anos 80 resultaram numa piora significativa da distribuição. Entre 1972 e 1993, o número dos pobres na América Latina dobrou, atingindo 110 milhões. Nos últimos anos, a recuperação econômica não diminuiu o número absoluto de pobres nem corrigiu as disparidades dos anos 80.
A distribuição da riqueza e da educação explica a má distribuição da renda na América Latina. Nos anos 60, a população latino-americana possuía um nível de educação comparável ao de outros países com o mesmo grau de desenvolvimento. Mas, desde então, a região não progrediu nessa área. Em consequência, na metade dos anos 90, a população latino-americana tem, em média, quatro anos a menos de educação que as populações do Sudeste Asiático. A evolução da desigualdade reflete uma crescente disparidade educacional e um esforço de segunda categoria na formação do capital humano.
Hoje, é largamente reconhecido que a desigualdade da renda e a pobreza só podem mudar com uma melhora radical na educação de base. Isso requer uma realocação das despesas públicas, para reformar o sistema educacional e melhorar a qualidade do ensino.
Mas, após décadas de regime militar, a América Latina está apenas começando a aprender a conviver com o regime democrático. E governos nas mãos de minorias míopes e endinheiradas têm pouco interesse em realocar gastos para a educação dos pobres. Os presidentes estão mais interessados em mudar as Constituições para se reeleger do que em reformar a administração pública.
Para complicar, parte da oposição parece mais interessada em mobilizar demonstrações de rua do que em se unir em torno de um programa alternativo de governo. Tudo indica que ainda temos um longo caminho a percorrer até que governos democráticos e instituições estáveis formem a base do crescimento com equidade. Por enquanto, vamos voando baixinho.

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