São Paulo, quarta-feira, 10 de setembro de 1997
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Retratos e caricaturas

EUNICE R. DURHAM

É muito difícil hoje tentar discutir, com um mínimo de imparcialidade, a situação educacional brasileira. Os intelectuais que se interessam por esse problema parecem ter aderido quase todos a um maniqueísmo radical. Pior, alguns se julgam palmatória do mundo e atiram à esquerda e à direita, não vendo nada de positivo em lugar nenhum.
Nesse tiroteio, eu me sinto como se tivesse me transformado na dra. Jekyll e na senhora Hyde. No ano passado, o jornalista Paulo Francis me atacara repetidamente, caracterizando-me como "estatista retrógrada". Fui erigida, assim, em paladina do ensino público e cega inimiga do valoroso setor privado.
Há poucos dias, como consequência de um debate na PUC no qual afirmei que Roberto Romano traçara uma caricatura do ensino superior privado, parece que mudei para outro extremo, e minha recente nomeação para o Conselho Nacional de Educação é vista como ameaça às universidades públicas, fortalecendo a privatização do ensino.
Acredito, entretanto, que o universo de ensino superior é extremamente complexo e contraditório. Não resolveremos os problemas que o afligem nem melhoraremos a qualidade do ensino, que é tarefa tão urgente como necessária, transformando a questão numa luta do bem contra o mal. O que temos são diferentes tons de cinza.
Não há dúvida de que, no conjunto, o ensino superior público é de melhor qualidade que o particular. Encontra-se hoje, entretanto, numa situação de crise que impede sua transformação, necessária para fazer face aos novos desafios que se colocam para a sociedade brasileira.
As universidades mantidas pelo Estado, embora tenham produzido ilhas de competência no que diz respeito à pesquisa (infelizmente poucas, dado o tamanho do sistema), não enfrentaram no passado (e continuam não enfrentando) os problemas colocados pela grande demanda por ensino superior.
O aumento constante do número de professores e de funcionários não tem sido acompanhado, nem de longe, pelo crescimento das matrículas, tornando o ensino público excessivamente caro e elitista. Além disso, as universidades continuam apegadas a uma estrutura de oferta de cursos extremamente antiquada, ignorando a diversidade de interesses que caracteriza a demanda ampliada por ensino superior.
A responsabilidade por esse estado de coisas recai, em última instância, sobre um sistema centralizado, de rígidos controles burocráticos, muito difícil de ser alterado, uma vez que ele serve de respaldo a privilégios corporativos dos quais ninguém quer abrir mão.
Também se deve reconhecer que, no setor público, ao lado de excelentes universidades, há outras que nem sequer fazem jus ao nome; mas, no conjunto, o tom é de um cinza mais claro.
O setor privado é de um cinza mais escuro: inclui, ao lado de empresas de ensino muito mais interessadas no lucro do que na formação que oferecem aos estudantes, algumas instituições excelentes. O debate do qual participei com o professor Romano se travava na PUC-SP, que é uma delas. Trata-se claramente de uma universidade sem fins lucrativos, que oferece ensino de qualidade por preço justo e que produz pesquisas importantes e relevantes.
Há que reconhecer, entretanto, que o sistema federal de controles burocráticos, ao mesmo tempo em que enrijeceu as universidades federais, foi incapaz de exercer um controle eficaz sobre a proliferação de instituições privadas de qualidade muito duvidosa.
Não há, portanto, como denegrir inteiramente um setor nem como exaltar integralmente outro. No conjunto das instituições misturam-se o joio e o trigo (embora o joio seja mais frequente em um campo que em outro).
O governo federal faz hoje um esforço consistente para alterar essa situação. Medidas que asseguram a autonomia das universidades públicas e o desmonte dos controles burocráticos caminham penosamente no Congresso.
Ao mesmo tempo, inicia-se a institucionalização de um sistema diversificado de avaliação de diferentes tipos, que inclui, além do provão, a visita de comissões de especialistas às instituições que mostram desempenho insatisfatório e, enfim, graças à nova LDB, avaliações institucionais amplas e periódicas para recredenciamento das universidades e faculdades já existentes.
Não há soluções milagrosas para o ensino superior. Precisamos reconhecer a impossibilidade e a indesejabilidade tanto da privatização do setor público como da federalização ou estadualização do privado. O caminho reside em tentar melhorar ambos, erradicando o joio, por meio da avaliação, e fertilizando o trigo, com incentivos adequados. Os resultados não serão imediatos, mas virão com certeza, embora apenas no médio prazo, graças a uma política consistente que, acredito, vem sendo implementada.

Eunice Ribeiro Durham, antropóloga, é coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre Ensino Superior da USP e membro do Conselho Nacional de Educação.

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