São Paulo, sábado, 13 de setembro de 1997
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O enterro da Maria Candelária

LUÍS NASSIF
DO CONSELHO EDITORIAL

Ontem, Brasília inaugurou o Túmulo do Último Burocrata Desaparecido. Foi uma cerimônia simples, porém tocante. No mausoléu -desenhado 80 anos antes pelo arquiteto Oscar Niemayer- foram enterradas as cinzas de dona Maria Candelária da Silva Dias, devidamente acondicionadas em um chipe, com o registro de seu DNA, destinado a perpetuá-la para estudo das futuras gerações.
Dona Maria Candelária era filha de alta funcionária, que havia caído de pára-quedas na letra O do Estatuto do Funcionalismo, lá pelos idos de 1960.
Como tal, herdou a pensão da mãe por toda a vida, enquanto não se casasse. Não casou, mas muito amou. Viveu maritalmente por 45 anos com seu Adamastor de Jesus, tiveram sete filhos, 32 netos e incontáveis bisnetos, que conseguiram criar com dignidade, graças à pensão da mãe -garantida a ela por jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal, com base na tese do direito adquirido.
Muitos outros filhos de altos funcionários gozaram desse privilégio. O último foi o de dona Maria, morta em idade provecta. Daí o fato de arqueólogos e historiadores terem solicitado a preservação de seu DNA.
Fora os pesquisadores, a população de Brasília não deu muita atenção ao episódio. Em 2030, a cidade perdeu a condição de capital da República, em favor de Porto Alegre, que se tornou capital do Mercosul. Houve debandada de políticos, funcionários e jornalistas. Desde 2015 já não existiam Forças Armadas no país.
A cidade conseguiu encontrar sua nova vocação econômica assumindo o posto de capital espiritual do Mercosul.
Depois da saída do último senador, fenômenos estranhos passaram a espocar na cidade. Profetas começaram a andar em círculos, prognosticando o fim do mundo. Estudos parapsicológicos realizados por volta de 2020 localizaram o fenômeno no ectoplasma de economistas que passaram pela cidade nos idos dos anos 80, do século passado, prevendo o fim do mundo. Suas idéias se foram, mas sua energia ficou, absorvida pelos feiticeiros que habitavam o Planalto Central.
A partir dessas manifestações mediúnicas, a cidade descobriu que os economistas tinham uma utilidade: a de "musos" da nova fase mística. Em pouco tempo, organizou-se o turismo espiritual, que permitiu aos visitantes o acesso a toda forma de apoio e previsão -esoterismo, umbanda, espiritismo, leituras de cartas e de mãos, mapa astral, tarô, cabala, búzios e as formas criadas com o advento da realidade virtual.
O sucesso da nova atividade foi tão instantâneo que, em pouco tempo, Brasília conseguiu derrubar a vantagem acumulada por Salvador, Rio de Janeiro e pelas sete cidades subterrâneas do sul de Minas.
Ontem, no enterro de dona Maria Candelária, pais-de-santo se fizeram presentes, formando uma comitiva espiritual, que a levou para o além. No ato, o ministro da Previdência queimou o último holerite de dona Maria e espalhou as cinzas pelo céu. Um velhinho, que acompanhou a solenidade meio afastado, confirmou com alguns moleques que brincavam de guerra nas estrelas no canto da praça: "Meninos, eu vi!".

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