São Paulo, domingo, 14 de setembro de 1997
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A honra como iceberg

JAMES SALTER
ESPECIAL PARA O "LIBÉRATION"

Entre as imagens -cavalheiro sulista, beberrão- há uma que me foi oferecida por uma senhora que, jovem em Los Angeles nos anos 30, foi amante de outro escritor, na época mais famoso. Ela esperava num ponto de ônibus para ir ao trabalho, quando Faulkner, que ia ao mesmo lugar, passou de carro e lhe ofereceu uma carona. Ele a conhecia levemente. Não havia feito a barba e dirigia descalço. Ela se lembra que havia garrafas vazias rolando pelo chão atrás de seu assento.
Faulkner era pobre, romântico, solitário. Sabe-se por outras fontes que também era desenvolto, orgulhoso, moral. Uma das grandes decepções de sua vida foi ter perdido a guerra -quer fosse a Guerra Civil, que destruiu o sul, ou a Primeira Guerra Mundial, onde, com um pouco de sorte, teria podido ser um ás da aviação, já havia dado passos para tornar-se piloto quando a guerra chegou ao fim.
Não me lembro exatamente qual de seus livros li primeiro. Deve ter sido "Santuário", que lhe valeu uma fama por algo visto, na época, como sendo uma cena chocante. Meu preferido é "Enquanto Eu Morria", e também "O Som e a Fúria".
Faulkner não é um bom escritor -é um grande escritor. Sua linguagem pode ser pomposa e às vezes pretensiosa.
'Ridículos mamários'
Numa carta recente, Philippe Garnier me falava de um exemplo do qual eu me esquecera: um personagem um pouco retardado que evoca um par de seios femininos, falando de "ridículos mamários" (no original, "mammarian ludicrosities", em "Enquanto Eu Morria"). Apenas um escritor lamentável ou um grande escritor poderia deixar algo assim na página. No entanto, quando fazemos o balanço literário do século, Faulkner figura no topo. Os acordes trágicos de sua obra, a imensa força de sua convicção. Coragem, honra, autenticidade -são essas suas obsessões. E seus diálogos, quando soam adequados, às vezes são perfeitos.
Houve uma época em que ele desempenhou um papel grande em minha vida. Um de meus romances, o segundo, era uma imitação mal disfarçada de Faulkner. Talvez eu imaginasse que ninguém iria reparar. Tive razão, em parte, já que meu livro passou despercebido.
A regra é simples: quando se copia alguma coisa, é preciso superá-la. O que eu mais admirava em Faulkner, além da estrutura de "Enquanto Eu Morria", que eu havia tentado copiar, era seu senso inquebrantável de honra.
Aquilo me cativou como algo de esplêndido, como um iceberg que bóia em direção a mares mais quentes: magnífico, mas condenado. Faulkner nunca teve medo de escrever coisas nobres corajosamente, como algo que é preciso estimar muito. E, por conta disso, podemos perdoá-lo por muitas coisas.

Tradução de Clara Allain

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