São Paulo, domingo, 14 de setembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O desafio da arte contemporânea

JOSÉ GIL
ESPECIAL PARA A FOLHA

É verdade que ninguém sabe para onde vai. É verdade que as certezas que acompanhavam os movimentos vanguardistas, os discursos legitimadores das práticas artísticas não foram substituídos por outros que fornecessem à arte contemporânea mais consistência, pertinência e sentido.
A própria articulação discurso/obra-de-arte se alterou: não se trata já de propor uma nova via de construção de objetos que traria consigo uma modificação revolucionária da maneira de ver, percepcionar, sentir; e com ela uma outra organização do espaço, do tempo e da comunidade -tudo isto na senda, ainda, do espírito modernista da primeira metade do século 20, de que o minimalismo, a arte "povera" ou a arte conceitual representaram uma espécie de sequência final paradoxal, ao mesmo tempo exacerbada e negadora do seu próprio passado.
A arte contemporânea instalou-se, precisamente, com o estilhaçar das certezas. Tudo, aliás, pareceu estilhaçar-se nos anos 80: a convicção de que o caminho da arte era a crítica da própria arte e do que a constituiu como esfera autônoma na sociedade (desde o cavalete ao museu); a experimentação como processo e o fragmento como produto; uma certa universalidade do juízo de gosto.
A universalidade do gosto clássico (expressa no enunciado uno de um sujeito uno, representante da comunidade humana racional, como diz Kant), fora destronada pela universalidade diferencial do sujeito da modernidade, capaz de múltiplos gostos, de múltiplos estilos, de potenciar um devir incessante de formas (como em Joyce, em Malévitch, em Khlebnikov ou em Picasso); e até -como Duchamp e os seus discípulos americanos o mostraram- capaz de destruir as noções de gosto e de obra de arte.
Com a arte dita "contemporânea" (que começou -as datas sendo sempre artificiais- nos finais dos anos 70, com a "transvanguarda" italiana ), assistiu-se, para muitos com espanto e indignação, ao retorno aparente a tudo o que a arte moderna havia rejeitado: à representação figurativa, ao sujeito, à narrativa, à pintura-pintura; e a uma estranha coexistência de todos os gostos, de todas as correntes, de todos os estilos. A universalidade torna-se paradoxalmente local, regional ou individual -sem regra, sem direção, sem discurso universalista; cada artista vale agora por si, independentemente do valor dos outros, que se legitima curiosamente também por si, quer dizer por não exigir discurso legitimador.
É o reino do ecletismo total, daquilo a que se chamou o "qualquer coisa" ("n'importe quoi"). Tudo é possível; aliás, nas galerias e feiras internacionais de arte, expõem lado a lado os jovens artistas da nova-imagem (também chamada "pós-moderna") e os velhos modernistas, abstracionistas, conceptuais, minimalistas -de Cucchi a Donald Judd. Uma diferença essencial distingue, no entanto, a coexistência plural e eclética das formas da arte contemporânea, da multiplicidade das linguagens modernas: enquanto estas implicavam poderosas forças de invenção (do "novo"), aquelas participam do espírito "mole" da época.
Entretanto outros constrangimentos reaparecem: o do museu e o do mercado da arte. O planejamento internacional das exposições individuais em galerias americanas e européias e a compra sistemática das obras pelos museus estaduais condicionam radicalmente o trabalho dos artistas, contribuindo decisivamente (de um modo que não foi ainda bem estudado) para as estratégias de legitimação sem discurso: nomeadamente por meio da contaminação extraordinária do valor estético pelo valor monetário; e da emergência mediática de um gosto universal (porque planetário) de massa -o kitsch. Num certo sentido, é o fim da estética.
Um paradoxo -quase imperceptível ainda nos anos 80- acompanha a história da arte contemporânea: enquanto parece regressar aos cânones artísticos pré-modernistas (figuração, narrativa etc), essa arte realiza, seguramente de maneira não-consciente, uma crítica radical da imagem modernista. Crítica espontânea, pelo simples fato de existir segundo um regime de imagens em ruptura com os das correntes vanguardistas. Numa palavra: a arte contemporânea desdenha o voluntarismo prescritivo do discurso ideológico das vanguardas, abandonando-se ao movimento aleatório, confuso, promíscuo, quantas vezes inestético, de migração das imagens de toda a espécie (publicidade, televisão etc). O "qualquer coisa" participa desse movimento. A confusão é arrancamento a solos tradicionais, mistura, miscigenação. As imagens viajam, enxertam-se em matérias insuspeitadas, criam conexões inéditas.
Neste sentido, o regime de imagens da arte contemporânea, mesmo nos seus primórdios, rompia já com o dogmatismo em que se fechavam cada vez mais as vanguardas. Paradoxalmente, hoje podemos detectar aí uma carga certamente revolucionária: por exemplo, a citação como processo de reapropriação, tão criticada (a citação da citação da citação... como diz Lyotard), e que produziu sem dúvida obras tão indigentes, extraía a imagem do seu contexto sem, muitas vezes, a reinscrever num outro território. Deixava-a flutuar, ao sabor dos fluxos migratórios das imagens. Desligando-a de um referente, disponibilizando-a, virtualizava-a.
Este trabalho de descontextualização não é fruto da arte contemporânea. Vem de longe, na história da arte, e sofre uma aceleração fulgurante, com as novas tecnologias da comunicação.
Com Duchamp, a imagem artística é definitivamente arrancada à esfera autônoma da arte. Mas foi preciso esperar que o modernismo abstrato esgotasse o seu movimento de crítica interna ao seu próprio regime de imagens (descontextualizadas e sempre recontextualizadas em novas "escolas") para que o primeiro grande enxerto explosivo acontecesse entre o gesto duchampiano, que trazia a arte para fora da sua esfera, e o élan vanguardista de autodestruição da arte. "Ready-mades", "pop art", "body art", "land art", instalações, performances etc: a imagem sai definitivamente do seu quadro "artístico" habitual.
Mas esta convergência entre Duchamp e arte moderna é um paradoxo: porque o "ready-made" é dirigido contra toda a pintura "retiniana" em que Duchamp incluía explicitamente o abstracionismo. O "ready-made" era também uma paródia da vontade de "começar do zero" dos abstracionistas (o urinol invertido mostrava o seu contexto), uma paródia da desterritorialização absoluta que Kandinsky, Mondrian, Malévitch almejavam. E, afinal, foi o "ready-made" que mais abalou os territórios tradicionais, e o abstracionismo que mais tempo fez durar a pintura-pintura.
É que o humor é já de si paradoxal, e o destino histórico do gesto de Duchamp, o resultado irônico (a "ironia da história") de um paradoxo voltado -paradoxalmente- contra si próprio. A paródia (a "blague") pegou, e tornou-se o mais sério dos problemas da arte moderna.
É um novo paradoxo que caracteriza a arte contemporânea: a "nova imagem" contribuiu decisivamente para uma "nova experimentação" (1) a que intencionalmente era alheia, ou mesmo hostil. Mas esse jogo irônico dos artistas com as imagens "pegou" mais uma vez, e pôs-se a funcionar diferentemente da vontade dos seus autores.
Essa experimentação é o que há de melhor na arte de hoje (ao lado de tudo o que permanece dos anos 80 e se academiza rapidamente). Ela provoca o que eu chamaria o devir-real da imagem atual: um efeito de criação do real que tem certamente a ver com a natureza virtual da imagem contemporânea.
Um novo desafio -semelhante ao que a técnica da fotografia lançou à pintura do século 19 - se levanta à arte contemporânea, outra vez sob a forma de um paradoxo: a imagem virtual das novas tecnologias desfaz por toda a parte o efeito de sombra e de imaginário que traz à percepção o fechamento sobre si dos territórios existenciais. A extraordinária conexão de múltiplos campos heterogêneos que a imagem virtual induz, longe de "desmaterializar" ou "desrealizar" os objetos e os seres, torna-os mais reais, porque derruba os muros, os obstáculos, os écrans materiais e mentais que se erguem entre eles (e que, hoje, ao se reformarem nas grandes cidades virtuais, podem engendrar uma violência maior).
A fotografia não desafiou a pintura porque imitava melhor a realidade, mas porque suscitou um efeito-de-real na percepção das imagens e das coisas que a pintura da época não era capaz de produzir. Numa escala incomparavelmente mais vasta, a imagem virtual está hoje a provocar o mesmo efeito -e também o efeito contrário, perverso, de grandes fechamentos desrealizantes. Responder ao desafio é, para a arte contemporânea, dar-se a si própria um poder superior de criação do real, explorando, para além do campo tecnológico virtual, todo o virtual-real de que o homem de hoje é capaz.

Nota: 1. Idéia que devo a Suely Rolnik.

Texto Anterior: Os princípios do poder de Sheherazade
Próximo Texto: O fim dos dinossauros
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.