São Paulo, domingo, 14 de setembro de 1997
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Sob a sombra de James Joyce

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Mais do que qualquer outro de seus romances, "O Som e a Fúria" sempre deixava Faulkner enternecido. O livro, para ele, era uma espécie de artefato keatsiano, uma urna grega de permanente dignidade estética. O mesmo juízo prevalece até hoje na crítica literária, embora algumas dúvidas e reservas tenham sido levantadas.
Assim como "Absalão, Absalão!", também "O Som e a Fúria" me parece uma obra inferior a "Luz em Agosto", ou a "Enquanto Eu Morria", que é a obra-prima de Faulkner. A marca do "Ulisses" de Joyce é visível demais em "O Som e a Fúria", que nem sempre é capaz de sustentar as intensidades de sua própria retórica.
Há alguma coisa de reprimido virtualmente do começo ao fim desse romance, algum vínculo autobiográfico entre a paixão de Quentin por sua irmã Caddy e uma paixão sem nome do próprio Faulkner -talvez (como sugere David Minter) pela irmã que ele nunca teve, ou quem sabe por Estelle Oldham, mais tarde sua mulher, mas só depois de ter sido casada com outro homem. O ciúme, intimamente ligado ao medo da morte, é um elemento central de "O Som e a Fúria".
Hugh Kenner, comparando o romance a seus precursores em Conrad e Joyce, põe de lado a saga da família Compson, que lhe parece excessivamente artificial. É um julgamento duro, mas legítimo, se Joyce e Conrad são trazidos muito para perto. Isto nos leva a um paradoxo infeliz: a construção de "O Som e a Fúria" é elaborada demais para sustentar o seu conteúdo despretensioso, uma trama de desastres de família. E esse conteúdo se presta com facilidade às reduções freudianas e similares; as repetições e os duplos seguem padrões comuns, e as vicissitudes dos instintos são, infelizmente, universais demais para que possam servir, de fato, a um fim romanesco.
Um apêndice escrito por Faulkner em 1946, a pedido de Malcom Cowley, para uma edição popular de "O Som e a Fúria", não só se tornou parcela integral do romance, mas representa, desde essa data, uma interpretação inevitável do livro, a expressão da vontade de potência de Faulkner sobre seu próprio texto. O apêndice está bem no espírito do Faulkner contador de histórias dessa época, prestes a escrever coisas menos interessantes, como "Intruder in the Dust", "Knight's Gambit" e "Requiem for a Nun", antes de desmoronar por completo em "Uma Fábula". Não é mais o Faulkner de 1928, iniciando sua maior fase; mesmo assim o apêndice conserva uma autoridade verbal surpreendente, culminando no tributo aos negros: "They endured" (perduraram).
Dá tristeza reconhecer que essa mesma autoridade não se deixa encontrar na maior parte de "O Som e a Fúria" propriamente dito. A voz de Quentin provoca um sobressalto, quando é claramente a voz do Stephen Dedalus de Joyce; e a mistura de vozes narrativas do escritor irlandês fica aparecendo e desaparecendo da história de Faulkner, sem relação evidente com os propósitos do romance. Só Leopold Bloom é mantido à distância -e ainda bem, porque sua presença sublime seria sublimemente irrelevante no contexto e só ajudaria a afundar o livro.
Se estou ressaltando as limitações de "O Som e a Fúria", é porque corremos o perigo de não enxergá-las de forma alguma, agora que Faulkner se transformou, com justiça, no romancista norte-americano do século, sem dúvida nosso prosador mais forte desde Henry James. "Enquanto Eu Morria" foi um experimento radical magnificamente bem-sucedido; suas formas e vozes são metáforas sempre adequadas para as individualidades aterradoras dos Bundrens. "O Som e a Fúria" foi outro experimento notável, mas influenciado em excesso pelo "Ulisses" de Joyce e, talvez, vítima de um caráter obscuro demais para o próprio autor.
O que salva a saga da família Compson é que é uma saga; e ela se enquadra num contexto de significados maiores, que sempre parecem percorrer as melhores obras de Faulkner. O que se escuta em "O Som e Fúria" é uma história que significa uma enormidade, porque Faulkner, para nós, constitui-se num cosmo literário de reverberações contínuas. Cada um de nós sai do livro persuadido de ter visto a criação e o apocalipse, o início e o fim de uma história que transcende os quatro filhos da família Compson e as misérias do romance familiar.

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