São Paulo, sexta-feira, 19 de setembro de 1997
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O elefante e o filhote de girafa

ALFREDO SIRKIS

Foi um belo discurso, aquele do presidente na conferência Rio + 5. São poucos os chefes de Estado que o conseguem de improviso. Disse até coisas profundas, sem estereótipos e platitudes que os governantes costumam pronunciar nessas ocasiões e que os franceses chamam "la langue de bois".
Nesse dia, também, encontrei o Betinho pela penúltima vez. Ele saiu antes. Disse, com ar malicioso: "Não vou ficar pro discurso do Fernando Henrique. Ele é tão simpático que pode acabar me engabelando". Piscou. Rimos...
Um desavisado que julgasse a política ambiental brasileira pela eloquência presidencial julgar-nos-ia um dos países ecologicamente mais avançados do planeta. Outro meditaria sobre a proverbial distância entre teoria e prática, intenção e gesto. Dificilmente imaginaria que vivemos semelhante paradoxo: desde o fim da ditadura, o presidente com o discurso mais "ecologicamente correto" está à frente do governo com a pior performance ambiental.
A primeira parte do governo Sarney foi pavorosa: queimadas imensas, posturas agressivamente antiindígenas do ministro do Exército, omissões e cumplicidades na Polícia Federal que facilitaram o assassinato de Chico Mendes.
Diante do escândalo internacional, Sarney conseguiu inverter, em certa medida, esse quadro reorganizando a área de meio ambiente, com Fernando César Mesquita à frente do recém-criado Ibama. Mesquita se destacou por dinamismo e disposição para a briga.
Collor chamou para chefiar a área ambiental José Lutzemberger, pioneiro de lutas ecológicas nos anos 70, muito respeitado internacionalmente. Como gestor público, não funcionou, mas sua gesticulação sinalizou certos avanços -inclusive na questão indígena, com a demarcação das terras ianomâmis.
A inapetência gerencial do velho Lutz abriu caminho ao controle da área ambiental por egressos do Itamaraty, como o depois ministro da Fazenda Rubens Ricupero, que continuou a dar certa visibilidade à área ambiental.
Com Fernando Henrique e sua anunciada aspiração de inserir vantajosamente o país na globalização, as expectativas cresceram muito. Não é apenas uma cartada macroeconômica, comercial ou financeira. Nossa força "global" potencial é sermos responsáveis pela maior floresta tropical úmida do planeta, pela maior concentração de águas doces e, de longe, pelo seu maior banco de biodiversidade.
Apenas isso seria suficiente para que o meio ambiente fosse considerado estratégico e não bizarramente relegado à vala comum, loteado politicamente com a base de sustentação parlamentar. Dificilmente poderia haver idéia mais infeliz que colocar dentro do Ministério do Meio Ambiente a irrigação, normalmente afeita à Agricultura ou à Integração Regional, com seu quinhão orçamentário que, em 97, representou 71% do R$ 1,34 bilhão do Ministério do Meio Ambiente. Um elefante sentado sobre um filhote de girafa.
O resto do estrago foi feito pela politicagem regional, com figuras como Amazonino Mendes ou Orleir Cameli fazendo parte da distinta base de sustentação do governo. A nomeação de superintendentes do Ibama ao sabor de indicações de deputados resultou em grande porosidade às pressões de interesses econômicos predatórios. A posição do Brasil em foros internacionais, contrária às cláusulas sociais e ambientais nos acordos comerciais, e em questões como a do mogno foi triste.
Assistimos nos últimos tempos, passivamente, às maiores queimadas na Amazônia desde os anos 80. O problema do subsídio à borracha amazônica, crucial para a sobrevivência dos seringueiros na floresta e, portanto, para sua preservação e exploração sustentável, foi varrido para baixo do tapete. O esvaziamento do Conama abre caminho para leis estaduais que ameaçam o pouco que resta de mata Atlântica e estabelece padrões muito condescendentes em relação à poluição automotiva.
Governos como os do Paraná e do Rio Grande do Sul promovem uma farra de financiamentos e outros incentivos para trazer novas montadoras, sem avaliação sobre as consequências a curto, médio e longo prazo para nossas cidades já tão poluídas e congestionadas.
Há que reconhecer a disposição para o diálogo do ministro Gustavo Krause, um estranho no ninho, e progressos visíveis na gestão de algumas unidades de conservação sob responsabilidade do Ibama. Na secretaria executiva, Aspásia Camargo vinha realizando um bom trabalho, com a Agenda 21 e a implantação da Comissão de Desenvolvimento Sustentável, discutindo questões de ecologia urbana e servindo de interface com as ONGs ambientalistas, até virar alvo de intrincadas maquinações.
Esses aspectos positivos não tiveram, no entanto, a abrangência suficiente para resolver os problemas estruturais de um sistema de gestão ambiental inadequado, balcanizado, sem recursos, sem peso real dentro do governo -particularmente diante das áreas econômica e diplomática- e, "last but not least", escandalosamente incluído naquela cota dita "franciscana", na qual reina o fisiologismo e a ecofluência presidencial escorre da vida real para desaguar no país do faz-de-conta.

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