São Paulo, segunda-feira, 29 de setembro de 1997
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Há algo de hippie no reino da Dinamarca

LUIZ ANTÔNIO RYFF
ENVIADO ESPECIAL À DINAMARCA

Encravado em um dos bairros mais chiques da capital dinamarquesa, há um lugar onde o sonho não morreu. Ou quase.
A Cidade Livre de Cristiania é considerada a única cidade hippie do mundo, por mais anacrônico que isso possa parecer. E é.
Logo na entrada, ao som do reggae que sai de enormes alto-falantes, os vendedores de artesanato dividem o chão de terra com vendedores de droga. Vários têm seus produtos em uma mão e um celular na outra.
Para o argentino Julio Maffia, 41, há 10 um cristianita, o espírito inicial de Cristiania desapareceu. "Era muito menos organizado. Mais anárquico e mais puro", disse à Folha. Ele exemplifica apontando para uma casa com a placa "propriedade privada".
O sentido cultural também não é mais o mesmo. "Aqui nós temos mais TVs do que livros", lamenta.
A história de Cristiania começa em 1971, quando algumas pessoas invadiram as casernas e o terreno de 22 hectares abandonados pelo Exército pouco tempo antes.
Rapidamente, centenas de jovens ocuparam o local, recuperando os prédios, construindo ateliês, criando lojas e pondo em prática um modo de vida alternativo.
Fontes de renda
Hoje, Cristiania tem cerca de mil moradores. A comunidade se autogoverna. A gerência de Cristiania foi dividida em vários conselhos, abertos a todos os habitantes. As decisões são tomadas por consenso -nunca pela maioria.
Para se manter, Cristiania conta com um fundo comum, que tem origem em um aluguel pago pelos habitantes maiores de idade e por outro aluguel pago pelo pequeno comércio local.
Esse dinheiro é usado para administrar o local (casa de banho comunal, enfermaria, jardim de infância etc.) e pagar as contas com o "mundo exterior" (tais como água e eletricidade).
Em 96, o orçamento de Cristiania ultrapassou US$ 1,5 milhão.
Maffia resume um pouco o sentido de Cristiania. "Todo esse país é muito tolerante. E aqui essa tolerância é ainda maior."
Heroína
Ainda na década de 70, o governo reconheceu Cristiania como uma "experiência social". Isso não impediu que a história de Cristiania fosse marcada por conflitos com as forças da ordem. O principal motivo é a venda de droga.
Hoje, os 250 metros da rua de entrada de Cristiania (conhecida como a "rua do Puxador") são ocupados por barraquinhas que vendem, à luz do dia, maconha e, principalmente, haxixe.
Antigamente, essas mesmas barraquinhas vendiam drogas mais pesadas, como heroína. Isso fez com que Cristiania fosse acusada de ser o centro do tráfico de drogas da Escandinávia.
Por conta disso, apesar de não ter leis, Cristiania impôs algumas restrições. Drogas pesadas, armas, violência e a venda ou aluguel das casas ou áreas residenciais são proibidos (já que, legalmente, ninguém possui direito sobre elas).
É proibido fotografar
Cartazes enormes lembram aos visitantes que fotografias e camping também não são permitidos.
A ocupação urbana de Cristiania é desordenada.
Muitos quintais foram transformados em hortas, outros tantos foram tomados pelo mato. Se algumas casas são incrementadas -mesmo que sob uma ótica pouco usual-, boa parte parece simplesmente ocupada.
"Aqui é uma favela de luxo", ironiza Maffia, que é artesão de jóias. Embora reconheça que o lugar é privilegiado para morar, ele não vê grandes diferenças entre os cristianitas e os estrangeiros.
Para a cantora dinamarquesa Natasha Trolle, 34, "todos que vivem aqui querem ter uma vida diferente, mais próxima da arte".
Ela trocou seu apartamento "sem nenhuma árvore" por uma casa em Cristiania há três anos. Para ocupar a casa de um amigo que decidiu deixar a cidade, ela teve de ser aprovada pelos vizinhos.
Ela se sente próxima dos vizinhos, mas não dos outros cristianitas. Não é um grupo homogêneo, segundo ela.
"Nos anos 70, todos estavam juntos e solidários. Isso não existe mais", diz Natasha. "Os tempos mudaram. Mas não necessariamente para pior."

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