São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998
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A globalização do espírito

ALBERTO OLIVA

Tudo que hoje é realidade começou muito longe no tempo como idéia. O computador começou a ganhar vida nos primeiros sistemas filosóficos do Ocidente. Como em "2001, Uma Odisséia no Espaço", de Stanley Kubrick, o osso de uma carcaça se transforma, nas mãos de um primata, em instrumento bélico, que, lançado ao alto, vira uma fantástica astronave, que atravessa os vastos céus mergulhados no mistério.
O que hoje se chama globalização vem de muito longe. Apesar de muitos a considerarem a grande vilã do mundo atual, ela é resultado da longa aventura intelectual da humanidade.
A literatura e a filosofia começaram a produzir obras portentosas quando conseguiram dar caráter universal à reflexão sobre a condição humana.
Os personagens de "Antígona" e "Édipo Rei", por exemplo, têm sido revisitados por diferentes gerações. Quase sempre provocam reflexão, emoção e encantamento. Dom Quixote é visceralmente espanhol, mas é imortal porque sua vida pode ser entendida por outras culturas e reaparecer dentro de cada um de nós, como uma forma singular de revivê-la.
A cultura ocidental fez avanços extraordinários a partir do momento em que começou a buscar o universal em todas as formas de manifestação dos particulares. As melhores obras da literatura mundial mostram que o mundo vem sendo espiritualmente unificado pela arte há séculos.
O milenar intercâmbio filosófico entre povos e culturas evidencia que é forte e difundida a crença de que, em princípio, os processos de pensamento, suas formas e conteúdos podem ser avaliados à luz de critérios intelectuais universalmente compartilhados.
As fronteiras do espírito de há muito vêm sendo derrubadas. A filosofia grega, tão distante de nós no tempo e no espaço, formulou as questões para as quais ainda estamos buscando as melhores respostas. A filosofia é, de fato, a primeira tentativa bem-sucedida de tornar globais esquemas de pensamento que qualquer sociologista apressado tenderia a considerar pálido reflexo do contexto em que foram criados.
O fato de existirem dialetos do pensamento (marxismo, freudismo, pragmatismo, liberalismo etc.) só reforça a confiança que os filósofos têm em conquistar a universalidade com suas explicações. Não houvesse a possibilidade de uma corrente de pensamento se universalizar, todo "ismo" se tornaria o cárcere do intelecto e inviabilizaria possíveis intercâmbios de idéias.
A ciência levou ainda mais longe o processo de universalização desencadeado pela arte e pela filosofia. Técnicas de pesquisa e resultados substantivos são avaliados por meio de procedimentos aos quais se atribui valor transcultural. Experimentos e demonstrações são replicados em diferentes contextos. Pesquisadores pertencentes a culturas as mais diferentes se submetem aos mesmos rituais de produção e avaliação de conhecimento. A constituição da "República da Ciência" contribuiu decisivamente para a emergência de um mundo onde as "coisas do espírito" pudessem ser globalizadas.
Que ninguém se engane: o mundo vem sendo unificado há séculos pela prometéica criatividade intelectual. No plano das idéias, a pesquisa filosófica e, sobretudo, a científica vêm se encarregando de diluir as diferenças entre povos e nacionalidades.
Os fenômenos da globalização financeira, que tantos sobressaltos causam hoje, resultaram desse longo processo de formação de nossa cultura artística, filosófica e científica. As últimas décadas, com todas as inovações das tecnologias da informação, só fizeram acelerar o processo. A bomba atômica, já se disse, começou a explodir no poema filosófico de Parmênides.
As últimas grandes conquistas tecnológicas imprimiram materialidade a muita coisa que por séculos permaneceu dormitando no mundo das abstrações, dos sonhos e das mirabolantes construções do espírito. Não podemos esquecer que se deram em ritmo lento as transformações ocorridas desde as remotas técnicas da metalurgia até os grandes inventos da era industrial.
A partir daí, tudo começou a mudar em velocidade estonteante. O início dos anos 80, quando a tecnologia de informática se associou à de telecomunicações, tornou possível, nos seus aspectos materiais, a formação da aldeia global. Arte, filosofia e ciência forneceram as condições espirituais da universalização; a tecnologia, os procedimentos materiais para viabilizar a globalização.
A grande unificação do mundo, que começou com a arte e com a filosofia e atingiu seu ápice intelectual na ciência, tem nos últimos séculos saído do campo intelectual para se transformar em tecnologias, que se convertem rapidamente em forças produtivas.
A questão que se coloca é: quais serão as consequências de tudo isso? Só o tempo dirá se o que tem sido extremamente fecundo no campo das construções intelectuais o será também no domínio das aplicações técnicas e do sistema produtivo mundial.

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