São Paulo, quarta-feira, 24 de junho de 1998
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Vikings e gendarmes

MARILENE FELINTO

Derrota, álcool, exército e futebol. A Europa bebe: a Inglaterra bebe uísque, a Alemanha bebe cerveja e a França, vinho. Aqui, em Marselha, os torcedores noruegueses andam fantasiados de vikings, seus ancestrais remotos, dando à cidade já velha uma atmosfera de ancianidade bárbara. A fundação de Marselha (então colônia grega na Gália), por volta do ano 600 a.C., marcou o nascimento da própria França.
Estamos na barbárie de antes de Cristo. Uniformizados e meio bêbados, os noruegueses lembram os mesmos navegadores, guerreiros e caçadores primitivos que foram um dia. Aqui, à beira do mar Mediterrâneo, eles passeiam pelas ruas como se ainda pertencessem a algum antigo reino -os burgúndios, os visigodos, os romanos- dispostos a conquistar essa Gália grega.
Os homens que inventaram os exércitos são, no fundo, os mesmos que inventaram as torcidas de futebol, seus uniformes e hinos. A bebida e a violência dão o diferencial da falta de objetivos e da covardia. Afinal, não há mais territórios a conquistar.
Existe, de fato, alguma semelhança bárbara entre o crime do torcedor alemão que atacou um gendarme (espécie de policial militar francês) depois de um jogo da Alemanha e a morte desse recruta do Exército brasileiro que vigiava a residência o Palácio da Alvorada, em Brasília.
Tudo é exército, tudo é sem sentido. O torcedor alemão atacou por trás o soldado francês, esmagou a cabeça do homem que está em coma, quase morto por conta de um jogo de futebol.
O recruta Weslley do Nascimento, de apenas 18 nos, morreu com um tiro de fuzil FAL na garganta. Só estava no Exército há dois meses e era sentinela na residência do presidente Fernando Henrique -e ganhava um salário mínimo para função de tamanha responsabilidade. Um contra-senso a vida do soldado.
Mas vamos ao jogo -o Noruega e Brasil, coisa tediosa no estádio de Marselha. A torcida brasileira dando seu show de breguice. A torcida que veio à França não é o povo pobre, sem opção de trabalho como o recruta Weslley. É uma classe média emburrecida, que lava seu carro do ano aos domingos e faz churrasco no jardim. Enquanto a Nike, e Ronaldinho, comem o dinheiro dela.
Mas vamos ao jogo. É a derrota. Escrevi essa coluna praticamente dentro do estádio. Esperando o resultado. Correndo para o estresse do centro de imprensa depois do jogo. Guardando uma linha para o possível gol... do Brasil? Um tédio. Assisti ao jogo pensando no recruta Weslley e no gendarme francês. O Brasil fez lá o seu gol sofrido. A Noruega foi à desforra.
Uma perda de tempo. É a tal derrota: uma bola que não entrou numa rede, num terreno de grama. Os jogadores correm e a vida passa. Os torcedores bebem porque a vida deles é um vazio. Viva a Nike, a esperta.
Estamos na barbárie de depois de Cristo.

E-mail: mfelinto@uol.com.br

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