São Paulo, sexta-feira, 26 de junho de 1998
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A universidade entre dois passos

ANTONIO MANOEL DOS SANTOS SILVA

As relações internacionais e a economia que as determina, em vez de se realizarem hoje como intercurso humanitário, realizam-se de fato como batalhas ininterruptas.
A face perversa da competição que se nota nas manobras especulativas mundiais mostra requintes de cinismo e crueldade: nações inteiras podem ter sua economia -e com ela sua estabilidade política e social- arrasada em alguns dias. Se não forem capazes de arregimentar e harmonizar todas as suas instituições, todo o seu efetivo, todas as suas cabeças pensantes, para o objetivo de uma resistência afirmativa, seguramente não prosperarão e, pior, não sobreviverão independentes.
Assim, causa-nos estranheza o que anda acontecendo hoje no Brasil. Em vez de união, vai-se impondo uma divisão crescente, abrindo-se mesmo um fosso entre a universidade pública e os governos, de modo que estes colocam aquela sob suspeita de toda ordem, e aquela vai-se obrigando a um excesso de preocupações de natureza endógena, quando não atribui a estes, os governos, a responsabilidade total pelos problemas que tem.
Nesse ambiente de negação recíproca, até fantasmas ganham corpo concreto e não se consegue distinguir os boatos das notícias verdadeiras. Quem trabalha seriamente na universidade, quem a vive realmente, cada dia ouve falar de novos inimigos, da proliferação de grupos interessados em desarticulá-la por dentro e de fora, em acabar com o ensino superior gratuito e, finalmente, em privatizá-la.
O duro é reconhecer que, em muitos casos, não se trata apenas de falatório. Talvez a síntese cinematográfica para isso seja a de duas cenas. A primeira vale para o argumento em que a vítima é a universidade: de um e outro lado da ravina, bandoleiros antiacadêmicos esperam chegar a caravana universitária para dizimá-la num fulminante ataque. A segunda vale para o argumento em que os governos sentem ser o Estado vítima do desperdício: o poço de areia movediça da universidade vai lentamente engolindo os parcos recursos do contribuinte honesto.
Sem alegorias ou sem a ilusão das telas, a guerra envolvente situa-se mais acima, no desenvolvimento fundado nas leis do mercado. Para vencê-la, para avaliar e superar suas contradições, o país tem que contar com a universidade pública como formadora de quadros humanos participativos e críticos e como produtora de ciência e de tecnologia. Tem que esperar e até exigir dela a recusa à cópia e às padronizações impostas, principalmente as educacionais. E tem que investir em sua recuperação, manutenção e modernização.
De fato, não se pode negar que as verbas governamentais diminuíram e, quando não, como se diz em relação à Unesp, Unicamp e USP, pouco condizem com as exigências sociais cada vez maiores e com o crescimento da pesquisa e pós-graduação. Tais conclusões, liberadas de arroubos afetivos, são verdadeiras: ultimamente os governos têm sido avaros com as universidades, prejudicando-as tanto na alocação direta de recursos quanto na destinação de verbas para órgãos de fomento à docência e à pesquisa. A Fapesp, em São Paulo, sendo exceção -por ter recursos garantidos pela Constituição do Estado-, confirma a regra geral.
Todavia não se pode negar também que muitos recursos recebidos são gastos nas engrenagens de uma estrutura funcional e administrativa cheia de vícios, arraigada em velhos costumes que se transformaram em normas sem sentido, distantes das atividades-fim e da realidade contemporânea. A universidade fica parecendo, então, um dinossauro perdido num universo cibernético. Isso explica em parte sua fragilidade e sua atitude defensiva, que é dar um passo para trás.
O passo para a frente consiste em buscar e concretizar um sistema de gestão destravado de instâncias burocráticas desnecessárias. Dando o justo valor a quem realmente trabalha em pesquisa e ensino de qualidade, a universidade pública só terá futuro se o futuro for o seu horizonte. E quem desenha esse futuro são, além dos impactos das novas tecnologias e do progresso científico, as demandas sociais presentes, que não são apenas as ditadas pelas necessidades de mercado. Sem esse passo inicial, não garantirá seu fortalecimento e sua sobrevivência. Muito menos terá possibilidade de se unir com as demais instituições na luta contra os perigos e as armadilhas da globalização. O que seria trágico.

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