São Paulo, domingo, 28 de junho de 1998
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Necrofilia tributária

OSIRIS LOPES FILHO

Semanazinha ruim, essa que terminou. Morte de Leandro e nova derrota da seleção para a Noruega. Houve uma inversão da ambiência prevalecente na semana anterior.
Impregnado por esse clima depressivo, enfrentei a leitura de diários oficiais. Eis que topo com a instrução normativa nº 53/98, firmada pelo secretário da Receita Federal. E verifico que a voracidade do apetite governamental incrementou-se, ao determinar o estupro tributário do espólio. É a necrofilia tributária.
Deve ter havido ingestão de dose cavalar de Viagra, para aguçar o libido federal ao ponto de se satisfazer com o espólio dos defuntos, agredindo-se a Constituição.
O pecado capital, em matéria constitucional, já tinha sido cometido. A lei nº 9.532/97, em seu art. 23, consagrou clara invasão de competência tributária, ao penetrar grosseiramente no campo de incidência do imposto de transmissão "causa mortis", dos Estados e do Distrito Federal. Estabeleceu-se a incidência do Imposto de Renda sobre as transmissões de propriedade em decorrência de heranças, legados e doações, determinando que o ônus do tributo é do espólio ou do doador.
Vale lembrar que não pode se tratar de renda, posto que, no caso, não há disponibilidade econômica, como produto do capital ou do trabalho, ou de sua combinação. Não há igualmente a materialização de proventos.
Do ponto de vista do espólio há perda patrimonial e não ganho de capital ou acréscimo patrimonial.
Como posta a situação, tem-se invasão de competência tributária, condenada pela Constituição, e impropriedade da incidência, pois externa ao campo de aplicação do IR.
A referida instrução normativa necrofílica vai além. Pretende alcançar sucessões decorrentes de morte, ocorridas anteriormente à edição da aludida lei. Elege como elemento temporal a data da sentença homologatória da partilha (art. 13), em novo atentado inconstitucional aos princípios da legalidade e da irretroatividade da lei.
Prevalece o cínico expediente de que regras inconstitucionais terão eficácia para a maioria do povo, pois a experiência demonstra que geralmente poucos afortunados se dispõem à ida ao Judiciário, em defesa de seus direitos. À maioria do povo aplica-se o rigor da lei. Mesmo que seja inconstitucional. É a filosofia governamental, agora dotada de tesão mórbida.

Osiris de Azevedo Lopes Filho, 58, advogado, é professor de Direito Tributário da Universidade de Brasília e ex-secretário da Receita Federal.

Texto Anterior: Países como o Brasil podem evitar crises?
Próximo Texto: Apesar da crise, cresce o comércio mundial
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.