São Paulo, segunda-feira, 13 de julho de 1998
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Inferno astral para o Banco Central

JAIRO SADDI

O Banco Central vem sendo ameaçado de sofrer judicialmente todos os tipos de processos por responsabilidade sobre suas decisões de liquidação ou intervenção extrajudicial. Assim o fizeram os ex-administradores dos falecidos Comind, Auxiliar, Brasilinvest etc., assim como os mais recentes casos do BMD, do Bamerindus e daqueles tantos que sofreram pelo "escândalo dos precatórios".
Uma vez reduzido o momento emergencial da absoluta falta de liquidez e da consequente necessidade de uma solução, o destino dos processos será outro. E os ex-réus terão todo o direito de reclamar indenizações morais e materiais pelos danos sofridos, se assim for o caso. E, ao que parece, e sem entrar no mérito da questão, há indícios suficientes de que algumas ações do Banco Central foram atabalhoadas, sem o devido cuidado legal, e o que é pior, culminando em uma condenação prévia administrativa.
Não se pode condenar ninguém sem julgamento, e não se pode julgar sem provas que componham o rol da denúncia. Se, onde há sociedade, há direito, um julgamento justo deve estar abalizado em provas concretas. Esse princípio, tão caro ao ser humano, é que edifica a base da sociedade e a democracia. E foi exatamente em nome dele que tanto sangue já se derramou.
No entanto já se noticiou na imprensa que o BC não conseguiu provar prejuízos causados e que, apesar das múltiplas irregularidades, algumas instituições tinham, na data de liquidação, como cobrir obrigações com credores. Esse fato foi relatado por José Eduardo Andrade Vieira, ex-controlador do Bamerindus, e por outros acionistas de instituições financeiras liquidadas. E, no Estado de Direito, como se sabe, até o Banco Central está obrigado a seguir a lei: quando não se constata prejuízo, a autoridade monetária deve determinar o arquivamento do inquérito administrativo e o levantamento da indisponibilidade de bens dos ex-administradores. Ou seja, não basta acusar e decretar a morte da instituição; é preciso comprovada e responsavelmente apurar se os prejuízos causados podem ser ressarcidos ou se há garantias suficientes para o prosseguimento normal do negócio.
Quando a decisão é política -e não técnica-, corre-se o risco de a eficácia ser contestada judicialmente. Assim como noticiado, é de esperar que o Banco Central venha a sofrer, daqui em diante, uma avalancha de ações de indenizações para ressarcir danos causados a seus ex-administradores.
O fato é especialmente grave, já que, segundo fontes do BC, a decisão foi contestada internamente. E, mesmo dispondo de extenso arsenal legal -há a medida provisória 1.470, que dá ao BC o poder de afastar o administrador sem liquidar a instituição-, é especialmente equivocada a atitude da instituição em agir com tamanha arbitrariedade.
Em primeiro lugar, o ônus da prova cabe sempre a quem a alega. Não se pode condenar alguém ao fracasso econômico sem a mínima comprovação dos fatos alegados. Segundo, até o pior criminoso tem o sagrado direito de se defender. É um princípio inviolável da nossa Constituição, ao celebrar a ampla defesa. Todos têm o direito a ela e o seu cerceamento é uma justificativa plena de nulidade processual.
A fragilidade desse ato administrativo pode ser medida por meio do que o BC conseguiu de provas nos chamados inquéritos administrativos, peças internas que nada consubstanciam além do que já havia sido amplamente divulgado. Das duas, uma: ou o Banco Central montou um arsenal de defesa muito frágil ou as irregularidades eram menos prováveis do que se supunha e a instituição foi um conivente útil em todo o processo. No caso do Banespa, pesa também o fato de que a intervenção prolongou-se por um tempo muito mais longo do que o desejado.
Aliás, é natural que, em uma democracia, e portanto em um ambiente político, sejam alimentados jogos e vaidades pessoais: todos nós conhecemos a natureza do jogo político. É de estranhar, porém, para dizer o mínimo, que o BC se tenha deixado levar por atitudes tão eivadas de motivos estranhos à boa técnica e tomado medida de tamanha proporção, ainda mais sem a certeza legal de que não terá que suportar o seu ônus.
O custo dessas indenizações facilmente poderá ultrapassar a casa dos R$ 10 bilhões. É que os imputados com o julgamento severo e equivocado do BC têm o direito de reclamar indenizações materiais (entre elas o lucro cessante) e indenizações de natureza moral, se as acusações que lhes foram atribuídas não se revelarem verdadeiras. Se o BC não provar o que alegou, será inevitavelmente condenado.
É imperiosa a reforma da lei 6.024. Além de ser um diploma legal repleto do "sprit de la guerre" do governo Médici, é uma lei ruim. Não existe crime se não há lei que defina um fato como tal -o velho princípio romano do "nullum crimen sine poene lege". Não há lei que defina gestão temerária ou fraudulenta, tampouco o que seja grave irregularidade. Esse tipo de arcabouço legal confere à autoridade monetária o direito de intervir e liquidar e, pior, definir qual comportamento constitui crime ou não.
O custo dessas "derrapagens" para a nação brasileira será alto daqui em diante. Ao que tudo parece, o inferno astral do BC já se iniciou. E, portanto, um cuidado maior será necessário para a proteção do sistema financeiro nacional. A criação de critérios objetivos para a decretação dos regimes saneadores -como, por exemplo, um índice numérico para a hipótese de se decretar a intervenção, digamos, 10% do PL negativo- já é um começo. Se evitar confusões deveria ser a especialidade do Banco Central, manter-se longe delas deveria hoje ser uma obrigação.

E-mail: jairo@saddi.com.br

Texto Anterior: Para que servem os bancos?
Próximo Texto: A desnacionalização da economia
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.