São Paulo, segunda-feira, 13 de julho de 1998
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Atores celebram o teatro em "Da Gaivota"

NELSON DE SÁ
ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA

Fernanda Montenegro anunciou no fim da apresentação de "Da Gaivota", de Anton Tchecov, sexta-feira em Curitiba, que aquela era a estréia da peça. Não era. Para quem viu o ensaio aberto, dias antes, é flagrante que a peça é obra em progresso. Vai agora a Salvador, depois Rio e chega a São Paulo em setembro.
Fernanda Torres, como Nina, diz depois de muito sofrer que o que importa é perseverar -e, ao contrário dos ensaios, não soa moralista, pequenamente moralista. É grande, trágica.
A atriz ainda não tem o domínio todo da cena, que é capital no espetáculo, mas a maior parte do tempo está radiante. É aplaudida em cena aberta ao variar emoção, lágrimas que vêm e vão, com firmeza, perseverança. Fez crescer, com sua interpretação, personagens que se aproximaram.
Fernanda Montenegro, na grande cena de sua Arkádina, com o amante Trigorin, tem um domínio maior, mas também perde o ritmo em um ou outro instante. É a obra em progresso, mas a um passo da plenitude. E assim acontece com quase todos.
Matheus Nachtergaele, como Treplev, filho de Arkádina, agora diz que ama Nina -e se acredita inteiramente. Quem perde, de modo inesperado, é o resignado Sorin, irmão de Arkádina. Nelson Dantas atua tão bem quanto nos ensaios, mas não sobressai como antes. Ainda assim, é o mais acabado intérprete tchecoviano.
Falta a Arkádina o prazer da crueldade. Fernanda Montenegro, a atriz que faz a atriz, como que resiste à perfídia criada por Tchecov. Vai à boca de cena e sublinha, "não me queiram mal", depois de humilhar e repelir o filho.
Mas é uma interpretação majestosa. Sua Arkádina sabe como seduzir, encantar, fascinar -seja o amante, seja o angustiado filho. Chega a ser técnica, na sedução. Fala o que seria uma meia verdade, sobre a "maravilha" literária de Trigorin, e convence. Faz sentido, ganha sentido.
Arkádina esmaga a vontade do amante, que queria trocá-la por Nina, com uma interpretação. A bem da verdade, também é sinceramente cruel ao menos uma vez, ao dizer, sem emoção alguma, que não leu nada do que o filho escreveu, por falta de tempo.
Mas o que faz a atriz desviar o personagem tantas vezes para a comicidade, a voz em falsete? Talvez sua própria história no palco brasileiro, ela que é de uma geração contrária ao modelo das "divas", como Arkádina. Fernanda Montenegro é, não tem como negar, diva. Talvez moderna, não-romântica, mas diva. De todos os seus papéis recentes, este é o que ela veste melhor.
Um belo de um desafio, depois de cinco décadas de carreira. O coroamento da primeira-dama do teatro (e do cinema, e da televisão). Mas falta o desejo da coroação, para Arkádina e a própria peça chegarem à plenitude -e estabelecer-se realmente o conflito central, das atrizes.
Trigorin, o amante, escritor festejado, está muito bem, sinuoso com todos, um cínico consigo mesmo. Mas também ele, o intérprete Celso Frateschi, parece estar distante de abraçar as proporções do personagem, que chega a ser trágico, não menos do que Nina, em sua consciência do próprio talento -e fraquezas.
Pode-se dizer o mesmo, ainda, de Nachtergaele. Em primeiro lugar, há pouco da agressividade demolidora, da certeza que se esperaria do personagem, ao menos em parte de sua presença no palco. Mas Treplev já encorpou -e não é mais de um realismo psicológico, tão-somente, a atuação.
É tocante, no jovem escritor que antes brigava por "novas formas", uma de suas falas finais: "Escrever não é questão de formas novas ou formas velhas. É deixar as palavras saírem livremente da alma". Mas falta distinguir mais, em Treplev, a consciência de Jó, papel anterior de Nachtergaele, ou de Hamlet.
Quem mais está alheio a esta emocionante encenação, emocionante pela busca dos atores num texto que é sobre teatro, é Antônio Abujamra. Conta histórias de teatro como piadas -e são piadas, mas não apenas piadas.
A mão consciente, mas carinhosa, da diretora Daniela Thomas pode ser notada em toda parte. Por exemplo, no estímulo aos atores com simples marcações. Trigorin de um lado do palco, na boca de cena, Nina do outro, ao fundo: a distância e os olhares de ambos gritam a paixão.
Outros: a boca de Arkádina resvala pela calça de Trigorin, enquanto ela o seduz, na ilusão de submissão; a identificação do lago da peça com a própria platéia, o público; os poucos rompimentos da quarta parede, em direção ao público e ao lago, tratados com afeição, reverência.
O cenário tem mínima interferência. Está ao fundo, distante, pesado, com as suas formas modernistas, seus ângulos retos, seu escuro de um século decaído -e não o 19, mas o 20.
A tradução/adaptação não poderia ser mais singela, com as suas rimas, suas palavras claras e a opção por não afetar classicismo. E também, por que não, ao sublinhar o presente, do teatro da própria Daniela Thomas.

Texto Anterior: Salvador faz seu festival de inverno
Próximo Texto: Show-baile brasileiro abre festival italiano
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.