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"MEDÉIA"
Carnavalização de Antunes deu lugar à aridez da tragédia
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Corre o rumor que a "Medéia" de Antunes Filho é
uma obra-prima que tem passado
despercebida. Não é verdade. Primeiro, porque é preciso reservar
com certa antecedência um dos
99 lugares do galpão do Sesc Belenzinho. Depois, porque a peça
pode ser considerada instigante,
um ensaio genial, mas não uma
obra-prima.
Antunes não perdeu a majestade, mas o rei está vestido demais.
É possível reconhecer suas fontes
habituais (os deslocamentos em
grupo de Tadeuz Kantor, a estilização gestual de Kasuo Ono) em
estruturas que remetem ao teatro
grego (as três portas hierarquizando as entradas, a flauta no coro, a estreiteza do palco que leva à
marcação em ângulos retos) e ao
teatro oriental (a plasticidade da
entonação, o percussionista em
cena marcando os ritmos). Há
ainda figurinos que sintetizam
com elegância nazismo e TFP,
mendigos e viúvas, e um livro-programa requintado e erudito
que expõe intenções (Medéia seria a mãe natureza ultrajada) que
acabam submersas sob tantos signos.
Dizem, por outro lado, que o espetáculo só vale pela atuação de
Juliana Galdino. Também não é
verdade. Juliana não propõe nada
que não possa ser visto também
na atuação de seus parceiros: uma
precisão de relógio, uma concentração de supermarionetes, um
senso de conjunto que qualquer
suspiro viria a perturbar.
Porém, o coro de mulheres e a
figuração dos soldados se diluem
na padronização, a ama de Suzan
Damasceno se desenvolve em eco
(e não em contraponto) e Kleber
Caetano, ao se desdobrar em vários personagens, acaba incomodando por exagerar, em uma performance de dublador de desenho animado, um artificialismo
visível em todos.
Que Juliana é uma grande atriz,
a montagem o demonstra em excesso. Só Arthur Nestrovski poderia descrever a riqueza de ritmos e
timbres proposta pela difícil partitura de Antunes, que faz a atriz
se transformar em um Pierrot Lunaire Butô, com um virtuosismo
dos concertos de Paganini, que
encantam os violinistas e assombram os leigos. Porém, logo essa
variedade se torna previsível, e, ao
buscar sistematicamente um afeto a cada passo, sua atuação se
torna afetada.
Não se está reprovando aqui a
escolha de Antunes de recusar a
atuação psicológica do drama
burguês para fazer tragédia grega.
Antunes corre o risco, habilitado
por seu currículo, de abrir mão da
empatia fácil pela mãe que mata
os filhos, em busca dos arquétipos
da fábula.
Mas o hermetismo dos signos
utilizados rouba a cena. Falou-se,
por exemplo, que a gestualidade
de Galdino remetia a uma árvore
em chamas, metáfora da natureza
ultrajada. O mesmo poderia ser
dito, no entanto, de Elis Regina.
A atuação estilizada evita a pieguice mas acaba levando a atriz a
uma arrogância pré-stanislavskiana da técnica pela técnica, quase numa paródia de si mesma (assim como leva o crítico, que deveria estar expondo conteúdos, a se
atardar em decifrações teóricas).
Esse neocanastronismo não
condiz com o outro projeto de
Antunes, o realista "Prêt-à-Porter", no qual os atores, inclusive
Juliana, têm espaço para expor
um ponto de vista pessoal, compartilhando a criação do espetáculo. Não que a contribuição dos
atores seja privilégio da encenação realista. Gerald Thomas incorpora casos e acasos em espetáculos de criação coletiva que melhoram ao longo da temporada.
Mas a mão-de-ferro das marcações de Antunes Filho parece reivindicar para si todos os méritos
da encenação. Trabalha os atores
como massa de modelar, método
que o possibilita, aliás, substituir
atores nas vésperas da estréia.
O que se vai ver é Antunes. Suas
grandes montagens, no entanto
("Macunaíma", "Romeu e Julieta") tinham senso de humor. Hoje, infelizmente, a carnavalização
cedeu à aridez da tragédia, mas
qual tragédia não se sabe, pois a
caixa-preta se mantém hermeticamente fechada.
Medéia
Texto: Eurípides
Adaptação e direção: Antunes Filho
Com: Juliana Galdino, Kleber Caetano,
Suzan Damasceno, Emerson Danesi
Onde: Sesc Belenzinho - armazém 2 (av.
Álvaro Ramos, 991, tel. 0/xx/11/6605-8143)
Quando: sex., às 21h; sáb. e dom., às
19h; até 31/3
Quanto: R$ 10 e R$ 20
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