São Paulo, sábado, 02 de fevereiro de 2002

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"MEDÉIA"

Carnavalização de Antunes deu lugar à aridez da tragédia

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Corre o rumor que a "Medéia" de Antunes Filho é uma obra-prima que tem passado despercebida. Não é verdade. Primeiro, porque é preciso reservar com certa antecedência um dos 99 lugares do galpão do Sesc Belenzinho. Depois, porque a peça pode ser considerada instigante, um ensaio genial, mas não uma obra-prima.
Antunes não perdeu a majestade, mas o rei está vestido demais. É possível reconhecer suas fontes habituais (os deslocamentos em grupo de Tadeuz Kantor, a estilização gestual de Kasuo Ono) em estruturas que remetem ao teatro grego (as três portas hierarquizando as entradas, a flauta no coro, a estreiteza do palco que leva à marcação em ângulos retos) e ao teatro oriental (a plasticidade da entonação, o percussionista em cena marcando os ritmos). Há ainda figurinos que sintetizam com elegância nazismo e TFP, mendigos e viúvas, e um livro-programa requintado e erudito que expõe intenções (Medéia seria a mãe natureza ultrajada) que acabam submersas sob tantos signos.
Dizem, por outro lado, que o espetáculo só vale pela atuação de Juliana Galdino. Também não é verdade. Juliana não propõe nada que não possa ser visto também na atuação de seus parceiros: uma precisão de relógio, uma concentração de supermarionetes, um senso de conjunto que qualquer suspiro viria a perturbar.
Porém, o coro de mulheres e a figuração dos soldados se diluem na padronização, a ama de Suzan Damasceno se desenvolve em eco (e não em contraponto) e Kleber Caetano, ao se desdobrar em vários personagens, acaba incomodando por exagerar, em uma performance de dublador de desenho animado, um artificialismo visível em todos.
Que Juliana é uma grande atriz, a montagem o demonstra em excesso. Só Arthur Nestrovski poderia descrever a riqueza de ritmos e timbres proposta pela difícil partitura de Antunes, que faz a atriz se transformar em um Pierrot Lunaire Butô, com um virtuosismo dos concertos de Paganini, que encantam os violinistas e assombram os leigos. Porém, logo essa variedade se torna previsível, e, ao buscar sistematicamente um afeto a cada passo, sua atuação se torna afetada.
Não se está reprovando aqui a escolha de Antunes de recusar a atuação psicológica do drama burguês para fazer tragédia grega. Antunes corre o risco, habilitado por seu currículo, de abrir mão da empatia fácil pela mãe que mata os filhos, em busca dos arquétipos da fábula.
Mas o hermetismo dos signos utilizados rouba a cena. Falou-se, por exemplo, que a gestualidade de Galdino remetia a uma árvore em chamas, metáfora da natureza ultrajada. O mesmo poderia ser dito, no entanto, de Elis Regina.
A atuação estilizada evita a pieguice mas acaba levando a atriz a uma arrogância pré-stanislavskiana da técnica pela técnica, quase numa paródia de si mesma (assim como leva o crítico, que deveria estar expondo conteúdos, a se atardar em decifrações teóricas).
Esse neocanastronismo não condiz com o outro projeto de Antunes, o realista "Prêt-à-Porter", no qual os atores, inclusive Juliana, têm espaço para expor um ponto de vista pessoal, compartilhando a criação do espetáculo. Não que a contribuição dos atores seja privilégio da encenação realista. Gerald Thomas incorpora casos e acasos em espetáculos de criação coletiva que melhoram ao longo da temporada.
Mas a mão-de-ferro das marcações de Antunes Filho parece reivindicar para si todos os méritos da encenação. Trabalha os atores como massa de modelar, método que o possibilita, aliás, substituir atores nas vésperas da estréia.
O que se vai ver é Antunes. Suas grandes montagens, no entanto ("Macunaíma", "Romeu e Julieta") tinham senso de humor. Hoje, infelizmente, a carnavalização cedeu à aridez da tragédia, mas qual tragédia não se sabe, pois a caixa-preta se mantém hermeticamente fechada.


Medéia
  
Texto: Eurípides
Adaptação e direção: Antunes Filho
Com: Juliana Galdino, Kleber Caetano, Suzan Damasceno, Emerson Danesi
Onde: Sesc Belenzinho - armazém 2 (av. Álvaro Ramos, 991, tel. 0/xx/11/6605-8143) Quando: sex., às 21h; sáb. e dom., às 19h; até 31/3 Quanto: R$ 10 e R$ 20



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