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ERUDITO/CRÍTICA
Amor no inferno, ou uma fantasia musical russa da paixão
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
A noite começou mais cedo,
com a cerimônia de lançamento do CD de "Hinos Brasileiros", gravados pela Osesp. Tem
um quê de patriotada, sem dúvida. Mas não era necessário fazer
uma gravação de referência do
"Hino Nacional" (1831), do "Hino
da Independência" (1822), do
"Hino à Bandeira" (1906), do "Hino da Proclamação da República"
(1889)? O conjunto forma um patrimônio público, muito mal tratado, para não dizer abandonado,
há séculos.
Inicialmente distribuído a 12
mil escolas (pelo Instituto Camargo Corrêa) e mais tarde disponibilizado na internet, o disco deve
promover também a qualidade
musical nos estádios, onde o brado retumbante quase sempre sucumbe à clava forte.
E a Osesp fez ainda a preparação
musicológica das partituras, na
seqüência da edição há dois anos
do "Hino Nacional", em trabalho
coordenado por Rubens Ricciardi
(do Departamento de Música da
USP/Ribeirão Preto).
Mas ninguém cantou hino no
palco da Sala São Paulo anteontem. A não ser que se tome os 50 e
tantos compassos do beijo como
um dos grandes hinos de amor de
todos os tempos, formando o clímax tântrico da ópera "Francesa
da Rimini" de Rachmaninov
(1873-1943). Estranha ópera: o libreto de Modest Tchaikovski (irmão do compositor) quase não
tem história, quase não tem teatro. Acompanha a descrição do
"imbroglio" amoroso de Paolo e
Francesca, na "Divina Comédia"
de Dante -a paixão ilícita entre
cunhados, estimulada pela leitura
do romance medieval de Lancelot
e Guinevere-, sem fazer muito
mais do que destruir a "terza rima" original, em favor de uma sublírica cantável.
O resultado são árias e árias,
sem maior integração dramática.
Mas foram compostas por Rachmaninov, recém-curado da depressão por um hipnotista e recém-chegado de uma lua-de-mel
viajando para ouvir óperas de
Wagner em Bayreuth e Veneza.
Ninguém escreve árias assim sem
saber o que é o amor e ninguém
escreve essas árias e coros sem saber também o que é o inferno.
É bem no inferno que começa,
com o coro de almas penadas entoando um tema em semitons e linhas cromáticas wagnerianas subindo e descendo na espinha da
orquestra. O prólogo é maior do
que qualquer outra parte e ali
Rachmaninov está livre para gozar a "dor maior" de "recordar-se
do tempo feliz na tristeza" -estranho sentimento para um recém-casado, mas quase tudo é insólito na tradição de interpretação da história de Paolo e Francesca. Quase sempre se esquece,
por exemplo, que Dante condenou o casal por adultério.
Ninguém condenaria agora,
muito menos depois de ouvir a
volumosa calorosa voz da soprano russa Marina Shaguch, trocando encantamentos com seu compatriota tenor Vsevolod Grivnov.
Uma versão de concerto, como
essa da Osesp, só beneficia a ópera, que é muito mais um poema
sinfônico cantado. E o maestro
Neschling, de sua parte, não brinca com a paixão.
De todas as paixões, nenhuma
pior do que o ciúme; mas o destino do marido traído Malatesta, na
voz do barítono russo Sergei Leiferkus, ganhou conotações de
dignidade que só um cantor tão
maduro é capaz de inventar. Não
era manso, mas não era louco.
Nem loucos nem mansos, também, foram o Dante e Virgílio de
Marcos Thadeu e Thoróh de Souza, levando um ao outro pelas
profundezas.
Um momento entre tantos: a
"bênção eterna" do beijo, cantada
por Shaguch no limite expressivo
da audição, com a orquestra em
"pianissimo" por trás, fazendo
cair melodias escala abaixo, até o
mágico toque da harpa e da trompa, ecoando depois no clarinete
baixo e nos tímpanos. Nessas horas, quem não se entrega às fantasias do compositor?
Naquela platéia, ninguém diria
que não. O tumultuoso aplauso
lhe valeu três árias da ópera "Ievguêni Oniéguin" de Tchaikovski
(1840-93), cada uma cantada por
um solista. Se nem tudo, antes,
chegava a ser a música das esferas,
aqui se tinha só o sumo, tragado
com sofreguidão pelos mil apaixonados corações.
Osesp
Onde: Sala São Paulo (pça. Júlio Prestes,
s/nš, região central, tel. 3337-5414)
Quando: hoje, às 16h30
Quanto: de R$ 22 a R$ 70
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