São Paulo, sábado, 04 de setembro de 2004

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ERUDITO/CRÍTICA

Amor no inferno, ou uma fantasia musical russa da paixão

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

A noite começou mais cedo, com a cerimônia de lançamento do CD de "Hinos Brasileiros", gravados pela Osesp. Tem um quê de patriotada, sem dúvida. Mas não era necessário fazer uma gravação de referência do "Hino Nacional" (1831), do "Hino da Independência" (1822), do "Hino à Bandeira" (1906), do "Hino da Proclamação da República" (1889)? O conjunto forma um patrimônio público, muito mal tratado, para não dizer abandonado, há séculos.
Inicialmente distribuído a 12 mil escolas (pelo Instituto Camargo Corrêa) e mais tarde disponibilizado na internet, o disco deve promover também a qualidade musical nos estádios, onde o brado retumbante quase sempre sucumbe à clava forte.
E a Osesp fez ainda a preparação musicológica das partituras, na seqüência da edição há dois anos do "Hino Nacional", em trabalho coordenado por Rubens Ricciardi (do Departamento de Música da USP/Ribeirão Preto).
Mas ninguém cantou hino no palco da Sala São Paulo anteontem. A não ser que se tome os 50 e tantos compassos do beijo como um dos grandes hinos de amor de todos os tempos, formando o clímax tântrico da ópera "Francesa da Rimini" de Rachmaninov (1873-1943). Estranha ópera: o libreto de Modest Tchaikovski (irmão do compositor) quase não tem história, quase não tem teatro. Acompanha a descrição do "imbroglio" amoroso de Paolo e Francesca, na "Divina Comédia" de Dante -a paixão ilícita entre cunhados, estimulada pela leitura do romance medieval de Lancelot e Guinevere-, sem fazer muito mais do que destruir a "terza rima" original, em favor de uma sublírica cantável.
O resultado são árias e árias, sem maior integração dramática. Mas foram compostas por Rachmaninov, recém-curado da depressão por um hipnotista e recém-chegado de uma lua-de-mel viajando para ouvir óperas de Wagner em Bayreuth e Veneza. Ninguém escreve árias assim sem saber o que é o amor e ninguém escreve essas árias e coros sem saber também o que é o inferno.
É bem no inferno que começa, com o coro de almas penadas entoando um tema em semitons e linhas cromáticas wagnerianas subindo e descendo na espinha da orquestra. O prólogo é maior do que qualquer outra parte e ali Rachmaninov está livre para gozar a "dor maior" de "recordar-se do tempo feliz na tristeza" -estranho sentimento para um recém-casado, mas quase tudo é insólito na tradição de interpretação da história de Paolo e Francesca. Quase sempre se esquece, por exemplo, que Dante condenou o casal por adultério.
Ninguém condenaria agora, muito menos depois de ouvir a volumosa calorosa voz da soprano russa Marina Shaguch, trocando encantamentos com seu compatriota tenor Vsevolod Grivnov. Uma versão de concerto, como essa da Osesp, só beneficia a ópera, que é muito mais um poema sinfônico cantado. E o maestro Neschling, de sua parte, não brinca com a paixão.
De todas as paixões, nenhuma pior do que o ciúme; mas o destino do marido traído Malatesta, na voz do barítono russo Sergei Leiferkus, ganhou conotações de dignidade que só um cantor tão maduro é capaz de inventar. Não era manso, mas não era louco.
Nem loucos nem mansos, também, foram o Dante e Virgílio de Marcos Thadeu e Thoróh de Souza, levando um ao outro pelas profundezas.
Um momento entre tantos: a "bênção eterna" do beijo, cantada por Shaguch no limite expressivo da audição, com a orquestra em "pianissimo" por trás, fazendo cair melodias escala abaixo, até o mágico toque da harpa e da trompa, ecoando depois no clarinete baixo e nos tímpanos. Nessas horas, quem não se entrega às fantasias do compositor?
Naquela platéia, ninguém diria que não. O tumultuoso aplauso lhe valeu três árias da ópera "Ievguêni Oniéguin" de Tchaikovski (1840-93), cada uma cantada por um solista. Se nem tudo, antes, chegava a ser a música das esferas, aqui se tinha só o sumo, tragado com sofreguidão pelos mil apaixonados corações.


Osesp
    
Onde: Sala São Paulo (pça. Júlio Prestes, s/nš, região central, tel. 3337-5414)
Quando: hoje, às 16h30
Quanto: de R$ 22 a R$ 70



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