São Paulo, sábado, 08 de abril de 2006

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CINEMA/CRÍTICA

Filme de estréia do diretor de origem marroquina Ismaël Ferroukhi aborda relação de jovem com o pai

Processo de revelação guia "A Grande Viagem"

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Séculos antes de o cinema inventar o "road movie", as peregrinações religiosas já funcionavam como situações adequadas para exercícios de autoconhecimento. O diretor de origem marroquina Ismaël Ferroukhi junta as duas situações numa só em seu longa de estréia, "A Grande Viagem", e alcança um filme honesto e esclarecedor.
O trabalho mostra a difícil relação de Reda, um jovem de 17 anos, com seu pai, um senhor de origem árabe que migrou para a França. Em comum, fora os laços sangüíneos, pouco os une. Reda não se interessa pelos ritos religiosos, namora uma garota não-muçulmana e só fala francês e inglês. Seu pai é fiel às tradições, só se expressa em dialeto norte-africano e pouco se comunica com o filho. Uma peregrinação a Meca vai juntá-los num mesmo veículo, num trajeto de mais de 5.000 km, da França à Arábia Saudita.
Em direta referência ao "Viagem à Itália", de Roberto Rossellini, Ferroukhi constrói seu relato de forma mais direta e sem sentimentalismos possível. A viagem, tal como pai e filho a experimentam, é um trajeto marcado por conflitos, rupturas e aproximações, mas é antes de tudo um processo de revelação.
Ovelha desgarrada da tradição familiar, Reda vai funcionar para o espectador como o guia do olhar. Para isso, Ferroukhi despe a atenção para qualquer tipo de interesse turístico. Na maioria das vezes, pai e filho percorrem espaços quaisquer, destituídos de significados simbólicos: estradas, postos de controle, hotéis e desertos. Já em lugares sobredeterminados, como a mesquita azul na Turquia e o encontro com os peregrinos em Meca, o diretor se esforça para alcançar um olhar "de dentro", capaz de fazer compreender seu significado místico, mas descarregando-o das falsificações dos orientalismos.
Nessa passagem do Ocidente para o islã, Redá funciona como o passageiro que aprende a ver. Seu lugar, mais fora do que dentro das tradições muçulmanas, impede que ele viva as peculiaridades culturais sem confrontá-las com seus próprios preconceitos. Desse modo, sua viagem não corre o risco de se transformar num percurso apenas pedagógico, mas chato, para o espectador.
Ferroukhi explora pelo cinema um modo viável de entendimento distante do confronto de visões que cada um de nós é posto hoje, como se fosse suficiente se posicionar de um lado ou de outro do "choque de civilizações" para estar no mundo. Ferroukhi , ao contrário, adota a postura de abolir essa mentalidade do confronto ao oferecer um percurso de iniciação no qual cada quilômetro que se avança se converte numa outra forma de conquista, em que para ser civilizado basta entender a civilização dos outros.


A Grande Viagem
Le Grand Voyage
   
Direção: Ismaël Ferroukhi
Produção: França/Marrocos, 2005
Com: Nicolas Cazalé, Mohamed Majd


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