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TEATRO
Com equipe harmônica e sem falhas, o espetáculo "Turistas & Refugiados" cumpre a função de dar voz ao invisível
Renata Melo viaja na utopia nossa de cada dia
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Você já foi ao Tuca Arena?
Não? Então vá. O que era
pouco mais que um porão virou
um teatro arrojado, próprio para
peças que confiam no ator: repare
que não há coxias, a platéia fica
circundando, e o palco remete à
democracia essencial do teatro
grego. Um espaço ideal, portanto,
para esta nova experiência de teatro-dança de Renata Melo, talvez
sua obra-prima.
Antes de entrar, no entanto, não
deixe de comprar, ao lado da bilheteria, um saquinho de frutas
secas com pimenta: a mistura
quase aleatória de doce e picante
será o acompanhamento ideal para o espetáculo.
A primeira cena, Adão e Eva
dançando sua expulsão do Paraíso, deixa falsamente prever um
hermetismo formal, mas, quando
Cláudia Missura adentra o palco,
apresentando seu corpo como se
fosse sua casa, põe logo o público
à vontade. Trata-se de uma excursão pelo cotidiano, pelas utopias
nossas de cada dia, alternando
com maestria o melancólico e o
hilariante, que a diretora-coreógrafa Renata Melo faz como Jacques Tati. Lembre-se de "As Férias de Monsieur Hulot": a precisão dos gestos, as cenas fragmentadas se sucedendo em ritmo de
jazz, o olhar anarquista desautorizando os rituais sociais.
Quando quase ao fim da peça
voltam Adão e Eva, é para serem
questionados pelos populares da
praça, como artistas famosos: o
ingênuo se mistura ao mais profundo em perguntas sobre a localização do Paraíso, por exemplo.
Nesse momento, Missura já está
na pele de Noêmia, a inesquecível
velhinha que já surgia em "Passatempo", da mesma diretora, e que
vem ganhando vida própria.
Mas ninguém do elenco fica para trás: são quatro atores e três
atrizes com a mesma agilidade camaleônica, capazes de mostrar
com a mesma precisão os dois lados da mesma moeda, quando os
turistas passam em suave transição a refugiados, com uma enorme dignidade, sem se deixar contagiar pelo deboche. Carlos Moreno, em especial, há muito merecia
mostrar seu talento trágico, em
geral ofuscado por sua simpatia.
O despojamento do texto de
Marta Góes, indo direto na ferida
e se afastando sem comentários
desnecessários, revela uma grande maturidade. O cenário de Fábio Namatame, portas que servem para tudo, é eficiente e lúdico, com a mágica reforçada pelo
seu figurino e pela luz de Michelle
Matalon e Carlos Moraes. A música de Marcelo Pellegrini, presente
nas melhores produções do ramo
experimental, completa essa
equipe harmônica e sem falhas.
O espetáculo foi inspirado em
uma experiência de Joseph Chaikin no La Mama de Nova York,
em 1980. Mas, ao contrário do turismo, o que vale no teatro não é a
proveniência do produto chique
importado, mas a recriação pelos
atores no aqui e agora. Na cena
em que o grito desarticulado de
cada refugiado é sucessivamente
traduzido por seu companheiro
de cena, a função mais nobre do
teatro é cumprida: dar voz ao invisível. Neste feriado, viaje para
dentro de você mesmo.
Turistas & Refugiados
Texto: Marta Góes e Renata Melo
Direção: Renata Melo
Com: Carlos Moreno, Claudia Missura,
Gabriela Flores
Onde: Tuca Arena (r. Monte Alegre,
1.024, Perdizes, tel. 3188-4156)
Quando: sex. e sáb., às 21h, e dom., às
19h; até 26 de setembro
Quanto: R$ 30
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