São Paulo, sábado, 10 de julho de 2004

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TEATRO

Com equipe harmônica e sem falhas, o espetáculo "Turistas & Refugiados" cumpre a função de dar voz ao invisível

Renata Melo viaja na utopia nossa de cada dia

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Você já foi ao Tuca Arena? Não? Então vá. O que era pouco mais que um porão virou um teatro arrojado, próprio para peças que confiam no ator: repare que não há coxias, a platéia fica circundando, e o palco remete à democracia essencial do teatro grego. Um espaço ideal, portanto, para esta nova experiência de teatro-dança de Renata Melo, talvez sua obra-prima.
Antes de entrar, no entanto, não deixe de comprar, ao lado da bilheteria, um saquinho de frutas secas com pimenta: a mistura quase aleatória de doce e picante será o acompanhamento ideal para o espetáculo.
A primeira cena, Adão e Eva dançando sua expulsão do Paraíso, deixa falsamente prever um hermetismo formal, mas, quando Cláudia Missura adentra o palco, apresentando seu corpo como se fosse sua casa, põe logo o público à vontade. Trata-se de uma excursão pelo cotidiano, pelas utopias nossas de cada dia, alternando com maestria o melancólico e o hilariante, que a diretora-coreógrafa Renata Melo faz como Jacques Tati. Lembre-se de "As Férias de Monsieur Hulot": a precisão dos gestos, as cenas fragmentadas se sucedendo em ritmo de jazz, o olhar anarquista desautorizando os rituais sociais.
Quando quase ao fim da peça voltam Adão e Eva, é para serem questionados pelos populares da praça, como artistas famosos: o ingênuo se mistura ao mais profundo em perguntas sobre a localização do Paraíso, por exemplo. Nesse momento, Missura já está na pele de Noêmia, a inesquecível velhinha que já surgia em "Passatempo", da mesma diretora, e que vem ganhando vida própria.
Mas ninguém do elenco fica para trás: são quatro atores e três atrizes com a mesma agilidade camaleônica, capazes de mostrar com a mesma precisão os dois lados da mesma moeda, quando os turistas passam em suave transição a refugiados, com uma enorme dignidade, sem se deixar contagiar pelo deboche. Carlos Moreno, em especial, há muito merecia mostrar seu talento trágico, em geral ofuscado por sua simpatia.
O despojamento do texto de Marta Góes, indo direto na ferida e se afastando sem comentários desnecessários, revela uma grande maturidade. O cenário de Fábio Namatame, portas que servem para tudo, é eficiente e lúdico, com a mágica reforçada pelo seu figurino e pela luz de Michelle Matalon e Carlos Moraes. A música de Marcelo Pellegrini, presente nas melhores produções do ramo experimental, completa essa equipe harmônica e sem falhas.
O espetáculo foi inspirado em uma experiência de Joseph Chaikin no La Mama de Nova York, em 1980. Mas, ao contrário do turismo, o que vale no teatro não é a proveniência do produto chique importado, mas a recriação pelos atores no aqui e agora. Na cena em que o grito desarticulado de cada refugiado é sucessivamente traduzido por seu companheiro de cena, a função mais nobre do teatro é cumprida: dar voz ao invisível. Neste feriado, viaje para dentro de você mesmo.


Turistas & Refugiados
    
Texto: Marta Góes e Renata Melo
Direção: Renata Melo
Com: Carlos Moreno, Claudia Missura, Gabriela Flores
Onde: Tuca Arena (r. Monte Alegre, 1.024, Perdizes, tel. 3188-4156)
Quando: sex. e sáb., às 21h, e dom., às 19h; até 26 de setembro
Quanto: R$ 30



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