São Paulo, sábado, 13 de novembro de 2004

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"CONTOS DE SEDUÇÃO"

Peça do Tapa alia pesquisa e diversão

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

"Contos de Sedução" é um vaudeville puro-sangue. Isto é: gravita em torno da vaporosa Paris do fim do século 19, com a ética sexual flexível até os limites da caricatura, sem perder a retórica elegante nem o bom humor bonachão. Nada de profundo nem explícito: sedução. Em cenas curtas, seis contos de Guy de Maupassant são alinhavados por flashes que mostram o próprio autor, já corroído pela sífilis, sonhando sua obra.
Indulgente com a superficialidade burguesa, dirão os patrulheiros do didatismo teatral. Por outro lado, os defensores da viabilidade econômica do teatro a qualquer preço -desde que não seja o preço do ingresso- costumam se irritar com qualquer reparo ao objetivo de simplesmente divertir a platéia, como se fosse crime de lesa-comédia. Defender a superficialidade em nome de uma questionável função formadora da platéia (o público, ao se divertir, tomaria gosto por teatro, como se isso fosse impossível com o drama) é na maioria das vezes uma tentativa de justificar peças ensaiadas às pressas, apoiando-se na fama, e não no talento.
O Tapa escapa com maestria a essas duas armadilhas -o didatismo da esquerda e o cinismo da direita- ao divertir com inteligência. Sabe tornar claro por trás da aparente inconseqüência de Maupassant o seu olhar socialmente aguçado, quase balzaquiano. Cada conto trata do desejo em uma classe diferente, em tema e variações: a baronesa que se experimenta prostituta, a dona-de-casa que quer voltar a seduzir seu marido propondo-lhe que finja ser seu amante, o imigrante faminto no trem prestando serviço à bela ama-de-leite que precisa amamentar com urgência...
Em contraponto à vertiginosa ética capitalista de prostituição, há a amarga condição de Maupassant, que, sabendo que iria morrer de sífilis, escreve freneticamente uma vasta obra -300 contos, cinco romances, três livros de poesia- entre a denúncia e o registro cotidiano. Baseado em uma sólida pesquisa de J.E. Amacker, que passou mais de uma década debruçado sobre essa obra, e o invejável repertório do Tapa, que vem estudando o comportamento da elite por meio de Maquiavel, Shaw e Vianinha, entre muitos outros, o diretor Eduardo Tolentino dá a cada cena um tom próprio, variando do escracho que remete ao absurdo de Ionesco a uma melancólica sutileza proustiana, sem perder o fio da meada.
Sem nada de indulgente no conteúdo, tampouco há qualquer facilitação na forma. Em 25 anos de existência, o Tapa tem uma sólida marca registrada de despojamento e rigor de marcas, com mudanças de cenário em cena aberta pelos próprios atores, que sustentam o espetáculo. Zécarlos Machado domina um tom de afiada e elegante ironia, que garante dignidade ao pária Maupassant. Brian Penido, que faz François, o fiel camareiro, concilia um apurado tempo cômico a um patético quase lírico. Clara Carvalho seduz tanto pelo físico quanto pela inteligência, sem perder a precisão, enquanto Eloísa Cichowitz, com vigor e um belo timbre de voz, já começa a se destacar no primeiro time das jovens atrizes paulistas.
Com todos esses trunfos, "Contos de Sedução" vem se mantendo em cartaz desde 2000, e não há razões para que saia, já que prova que é possível conciliar engajamento político com requinte estético, embasamento teórico com viabilidade comercial. Competindo com os caça-níqueis que dominam o mercado e dão má fama ao vaudeville em nome de um sucesso superficial de público de TV, o único erro estratégico do Tapa é confiar na inteligência e bom gosto da platéia -erro a curto prazo, espera-se.


Contos de Sedução
    
Texto: Guy de Maupassant
Direção: Eduardo Tolentino
Com: Brian Penido Ross, Clara Carvalho, Eloísa Cichowitz e Zécarlos Machado
Onde: Espaço Promon (av. Pres. Juscelino Kubitschek, 1.830, Itaim Bibi, tel. 3847-4111)
Quando: sex., às 21h30; sáb., às 21h; e dom., às 20h; até 28/11
Quanto: R$ 20 (sex.), R$ 30 (dom.) e R$ 40 (sáb.)



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