São Paulo, sábado, 13 de novembro de 2004

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"AMIZADE SEM FRONTEIRAS"

Dupeyron recicla a Paris cinematográfica produzida nos anos 60

CLAUDIO SZYNKIER
FREE-LANCE PARA A FOLHA

"Amizade sem Fronteiras" é um melodrama hidratado por "sentimento" de época, e sentimento, aqui, é conceito mais importante do que aparato de figurino e de reconstituição cenográfica, itens também presentes. O fato é que o filme faz visita à imagem e ao espírito "perdidos" -de Paris e do cinema feito lá nos 60- e os transforma em memórias atualizadas e coloridas.
Temos um menino judeu, Momo, em seu bairro parisiense. É abandonado pela família, e o velho Ibrahim -muçulmano dono da mercearia- passa a ser seu amigo e tutor. Dupeyron capta esse sentimento de época na radiografia da dinâmica das ruas, como se simulasse uma memória em movimento, sem grandes preocupações narrativas. Comércio cotidiano ativo -incluindo uma alegre prostituição- e produções francesas de cinema ao ar livre dão forma a esse ambiente.
Assim, o filme tenta empalhar certo espectro cinematográfico francês do começo da década de 60. Embora projete com interesse esse "ambiente" para o cinema, idéia amplificada na juventude (marca Truffaut) do menino e em sua comunicação hormonal e prosaica com o bairro, no filme há muito mais de um ecumenismo "moderno" do aprendizado intercultural e dos deslocamentos para territórios esquecidos. Tendência que fica clara em uma jornada continental de realismo de estrada para a qual a obra evolui, registro que lembra Walter Salles.
O problema maior é que, se Momo existe com vida, suas experiências recebem respostas mágicas e carga quase intimidadora de sabedoria "simples e sublime" de Ibrahim, o que cheira a um esforço poético desnecessário.
O tema do transporte para cenários e vestígios de lendários cinemas franceses é atual. Bertrand Tavernier prestou em "Passaporte para a Vida" (2002) sua homenagem aos fantasmas e sombrias imagens por trás do cinema francês da ocupação nazista.
"Amizade sem Fronteiras", em seu núcleo, fala sobre o desabamento de uma edificação chamada família, ponto tocado pelo japonês Kore-eda no recentíssimo "Ninguém Pode Saber". Há inclusive, nos dois filmes, o parente que, em um belo dia, deixa bilhete e dinheirinho em cima da mesa. "Cuide-se." Parte daí, porém, a reconstrução "protética" (pai que não é pai, filho que não é filho) da estrutura familiar, chave da obra de Dupeyron especificamente.


Uma Amizade sem Fronteiras
Monsieur Ibrahim et les Fleurs du Coran
  
Direção: François Dupeyron
Produção: França, 2003
Com: Omar Sharif, Pierre Boulanger



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