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ANÁLISE
Villela enfrenta teatro de Beckett com emoção
CLÁUDIA VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
O silêncio, em "Esperando
Godot", tem estatuto de personagem. Contraposto a Godot
-figura ausente, mas sempre referida, e suposto salvador-, o silêncio é a presença mais evidente
da peça, presença, no entanto,
evitada, pois portadora de sofrimento. É no silêncio que a consciência, esta flor negra, desabrocha, e é do silêncio que Vladimir e
Estragon buscam se evadir durante todo o espetáculo.
Assim como legou a seus personagens a tarefa de evitar o silêncio
constrangedor, Beckett legou
também à crítica a tarefa de
preencher com interpretações e
comentários seu próprio silêncio
em relação à sua obra: deu pouquíssimas entrevistas e não quis
esclarecer publicamente suas intenções literárias.
Contudo, se Beckett deixava livre o campo para o falatório da
crítica, em âmbito privado, nas
cartas e confissões aos amigos, revelou um desejo de controlar a
performance de suas peças. Antes
de morrer, ficou acertado que todas as montagens de seus textos
deveriam levar à risca as suas rubricas e nota-se de fato, em suas
peças tardias, didascálias cada vez
mais precisas, traçando marcas
para irretocáveis coreografias.
Se aceitou inovações em algumas montagens, foi por serem
performances que envolviam conhecidos. Pois a contrariedade
em relação a liberdades tomadas
com seus textos ficou mais do que
evidente quando, em 1988, moveu
uma ação contra a companhia holandesa De Haarlemse Toneelschuur, por haver encenado "Esperando Godot" com um elenco
feminino. "Mulheres não têm
próstata", ironizou o autor, para
quem a questão do gênero tinha
suma importância. Beckett, perdendo a ação, reagiu com a interdição de suas peças naquele país.
O que diria então o dramaturgo
irlandês sobre a atual montagem
de "Esperando Godot", orquestrada pelo diretor teatral Gabriel
Villela? Villela chamou para esta
empreitada um elenco feminino;
permitiu-se fugir à letra das rubricas ao prescindir dos jogos de
"music hall"; acrescentou um interlúdio mahleriano; e imprimiu à
montagem um pathos cristão,
plantando no centro da cena uma
árvore com traços de cruz.
Villela nutre-se enquanto artista
de elementos folclóricos de tradição cristã, e esta sua filiação à brasilidade surge de modo sutil e pertinente no espetáculo.
Ainda que não seja uma alegoria do cristianismo, "Esperando
Godot" agencia a mitologia cristã
para tocar em feridas humanas
como a solidão, o desamparo e a
decadência. Ao excluir da montagem os jogos do "music hall" e incluir um trecho de Mahler, Villela
reduz o caráter cômico da peça,
privilegiando o viés patético.
Para isso concorrem também as
interpretações magistrais das
quatro atrizes. Vladimir, Estragon, Pozzo e Lucky encarnam
quatro universos lingüísticos distintos e dão ao texto seu estatuto
universal.
As atrizes aproveitam o mote e
constroem seus personagens em
registros teatrais diferentes. Pozzo, interpretado por Lavínia Pannunzio, nos remete aos tipos da
"commedia dell'arte". Lucky, na
versão de Vera Zimmerman, lembra um títere sombrio e trágico.
Magali Biff trabalha seu Vladimir
em chave clownesca. Estragon,
por fim, é construído em tom expressionista por Bete Coelho, que
imprime ao personagem fragilidade e lirismo imprevistos. Sobre
a densa mortalha do silêncio são
costuradas as quatro interpretações, numa trama difícil, mas comovente.
Talvez Beckett não aprovasse o
caráter emocional desta montagem. Mas o fato é que a encenação
de Villela -simbiose entre brasilidade e existencialismo- enfrenta o texto preservando sua
pungente reflexão da condição
humana. O resto é silêncio.
Cláudia Vasconcellos é dramaturga,
mestre em filosofia pela USP, doutoranda em teoria literária pela USP, co-autora de "Miserê Bandalha" (em cartaz) e
autora de "A Mulher no Escuro" (Ateliê
Editorial, no prelo)
Esperando Godot
Quando: sex. a dom., às 21h; até 26/3
Onde: Sesc Belenzinho (r. Álvaro Ramos,
915, tel. 6602-3700)
Quanto: R$ 7,50 a R$ 15
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