São Paulo, sábado, 18 de março de 2006

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ANÁLISE

Villela enfrenta teatro de Beckett com emoção

CLÁUDIA VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O silêncio, em "Esperando Godot", tem estatuto de personagem. Contraposto a Godot -figura ausente, mas sempre referida, e suposto salvador-, o silêncio é a presença mais evidente da peça, presença, no entanto, evitada, pois portadora de sofrimento. É no silêncio que a consciência, esta flor negra, desabrocha, e é do silêncio que Vladimir e Estragon buscam se evadir durante todo o espetáculo.
Assim como legou a seus personagens a tarefa de evitar o silêncio constrangedor, Beckett legou também à crítica a tarefa de preencher com interpretações e comentários seu próprio silêncio em relação à sua obra: deu pouquíssimas entrevistas e não quis esclarecer publicamente suas intenções literárias.
Contudo, se Beckett deixava livre o campo para o falatório da crítica, em âmbito privado, nas cartas e confissões aos amigos, revelou um desejo de controlar a performance de suas peças. Antes de morrer, ficou acertado que todas as montagens de seus textos deveriam levar à risca as suas rubricas e nota-se de fato, em suas peças tardias, didascálias cada vez mais precisas, traçando marcas para irretocáveis coreografias.
Se aceitou inovações em algumas montagens, foi por serem performances que envolviam conhecidos. Pois a contrariedade em relação a liberdades tomadas com seus textos ficou mais do que evidente quando, em 1988, moveu uma ação contra a companhia holandesa De Haarlemse Toneelschuur, por haver encenado "Esperando Godot" com um elenco feminino. "Mulheres não têm próstata", ironizou o autor, para quem a questão do gênero tinha suma importância. Beckett, perdendo a ação, reagiu com a interdição de suas peças naquele país.
O que diria então o dramaturgo irlandês sobre a atual montagem de "Esperando Godot", orquestrada pelo diretor teatral Gabriel Villela? Villela chamou para esta empreitada um elenco feminino; permitiu-se fugir à letra das rubricas ao prescindir dos jogos de "music hall"; acrescentou um interlúdio mahleriano; e imprimiu à montagem um pathos cristão, plantando no centro da cena uma árvore com traços de cruz.
Villela nutre-se enquanto artista de elementos folclóricos de tradição cristã, e esta sua filiação à brasilidade surge de modo sutil e pertinente no espetáculo.
Ainda que não seja uma alegoria do cristianismo, "Esperando Godot" agencia a mitologia cristã para tocar em feridas humanas como a solidão, o desamparo e a decadência. Ao excluir da montagem os jogos do "music hall" e incluir um trecho de Mahler, Villela reduz o caráter cômico da peça, privilegiando o viés patético.
Para isso concorrem também as interpretações magistrais das quatro atrizes. Vladimir, Estragon, Pozzo e Lucky encarnam quatro universos lingüísticos distintos e dão ao texto seu estatuto universal.
As atrizes aproveitam o mote e constroem seus personagens em registros teatrais diferentes. Pozzo, interpretado por Lavínia Pannunzio, nos remete aos tipos da "commedia dell'arte". Lucky, na versão de Vera Zimmerman, lembra um títere sombrio e trágico. Magali Biff trabalha seu Vladimir em chave clownesca. Estragon, por fim, é construído em tom expressionista por Bete Coelho, que imprime ao personagem fragilidade e lirismo imprevistos. Sobre a densa mortalha do silêncio são costuradas as quatro interpretações, numa trama difícil, mas comovente.
Talvez Beckett não aprovasse o caráter emocional desta montagem. Mas o fato é que a encenação de Villela -simbiose entre brasilidade e existencialismo- enfrenta o texto preservando sua pungente reflexão da condição humana. O resto é silêncio.


Cláudia Vasconcellos é dramaturga, mestre em filosofia pela USP, doutoranda em teoria literária pela USP, co-autora de "Miserê Bandalha" (em cartaz) e autora de "A Mulher no Escuro" (Ateliê Editorial, no prelo)

Esperando Godot
Quando:
sex. a dom., às 21h; até 26/3
Onde: Sesc Belenzinho (r. Álvaro Ramos, 915, tel. 6602-3700)
Quanto: R$ 7,50 a R$ 15


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